quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

ELE e ELA


Era sempre assim, embora, por vezes, a memória, lhe trouxesse recordações que lhe contrariavam a vontade.

Á tarde, quando os sentimentos não viajavam nas asas da imaginação, sentava-se na amurada e contemplava a imensidão do mar como se as ondas o levassem no balançar de sonhos perdidos.

Sentia no corpo o arfar dos momentos que existiram e que se deixavam, de forma lasciva, morrer em suspiros de mãos deslizantes em seios túmidos, em corpos colados no calor húmido do prazer.

Hoje as saudades tolhiam os pensamentos, as recordações eram espirais que não conseguia reter, vinham e desapareciam no emaranhado confuso de um cérebro cansado, nas memórias que o faziam sofrer mas, ao mesmo tempo, lhe deixavam um travo ténue de uma felicidade que foi tão fugaz mas tão doce.

O mar ia e vinha naquela toada sincopada como se quisesse acompanhar a batida do seu coração. Mas era impossível o coração já parecia não bater, perdeu o ritmo no dia em que ela partiu, naquele dia em que, sem saber porque, apenas lhe ficou um enorme cansado, uma angústia que doía dentro do peito.

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Foi num dia, frio e chuvoso, de dezembro, o chapéu-de-chuva com uma rajada mais forte deixou o pano voar ficando, apenas, um esqueleto de arame vergado ao sabor do vento. Ele reparou e foi célere na ajuda:

- Abrigue-se aqui, e estendeu o seu chapéu, vamos até aquele café para se recompor.

Ela aceitou, sem uma palavra, só lhe apetecia chorar, sentia-se ridícula, encharcada e com os despojos de algo que foi um chapéu-de-chuva.

Só quando chegou ao café, recobrou e, viu como ele era bonito, mas isso, era apenas um pormenor.

Aceitou um café, por agradecimento e para recuperar da raiva e daquela sensação de impotência perante uma simples rajada de vento.

De repente, os dois, riam às gargalhadas pelo insólito e ela, um pouco, pelos nervos acumulados.

Ele atreveu-se:

- Não pense mal, mas tenho o carro, muito próximo, posso leva-la a casa ou onde desejar.

Ela sorriu, era linda mesmo com os olhos esborratados, com a pintura misturada, com a água da chuva. 

Aceitou e, apenas, pediu:

- Dá-me, só, um momento para compor a desgraça da minha cara?

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Morava num bairro, de vivendas geminadas, muito calmo e florido. 

- Fico aqui, disse, agradeço a sua amabilidade.

Abriu a porta, estendeu-lhe a mão e preparava-se para sair, mas ele não se conteve:

- E acaba aqui? Não nos voltamos a ver?

Porque não vamos, um dia destes ao cinema, ao teatro ou simplesmente almoçar! Ou será que não pode? 

Sorriu e, agora reparou melhor, era linda, e quando sorria fazia duas covinhas, nas faces, o que lhe davam um encanto especial. 

Respondeu-lhe:

- Poder, posso! Só não sei de devo, afinal nem nos conhecemos!

- Mas, replicou, é essa a oportunidade de nos conhecermos um pouco melhor.

- Está bem, disse, que acha sábado, ao meio dia, no café da desgraça?

- Combinado, lá estarei! Respondeu.

*****

Hoje não chovia mas o dia estava frio.

Ele escolheu o mesmo lugar, não por saudosismo, mas por algo que não sabia explicar.

Ela chegou enrolada num belo casaco vermelho, luvas e sapatos da mesma cor. O cabelo, negro, caia em suaves caracóis nos ombros.

O sorriso, um pouco tímido, vincava aquelas covinhas, que realçavam toda a sensualidade que a envolviam.

Ele, levantou-se e ajeitou uma cadeira, não sem antes desabafar: 

- Está linda! Meu Deus, no outro dia mesmo com a chuva, também estava, mas hoje supera!

- Obrigada, respondeu, com este frio nem sabia o que vestir. Venho um pouco a dar nas vistas.

******

Ela, tal como ele, gostavam de comida italiana.

Foram ao restaurante do Alessandro onde, segundo ele, serviam os melhores raviólis e um  Capeleti à Napolitana de comer e chorar por mais.

Depois, passearam à beira mar, conversas que saíram naturalmente. Ele abriu o coração, ela foi mais prudente, foi escutando. Vivia com os pais, não tinha por agora compromissos.

Quase sem darem por isso começaram a caminhar de mãos dadas.

- Curioso, constatou ele, estamos de mãos dadas e ainda não sabemos os nossos nomes!

- É verdade, tens razão, eu sou Lúcia. E tu és Luís, não és?

- Como sabes? Perguntou, admirado.

- Ouvi o empregado do restaurante tratar-te por senhor Luís.

Sentaram-se nesta mesma amurada, nela trocaram o primeiro beijo, furtivo, suave mas intenso.

****

Depois foi o paraíso, todos os momentos eram poucos para estarem juntos. Amaram-se como se o amanhã jamais existisse, promessas eternas. Os dias de trabalho pareciam não ter fim para voltarem para os braços um do outro.

Iam quatro meses passados, a primavera começava a perfumar o ar e as flores, timidamente, iam colorindo os jardins.

Lúcia e Luís continuavam na maior paixão e os planos para o futuro começavam a fazer parte dos seus pensamentos.

Num fim do dia, abraçados no doce torpor dum momento especial, Lúcia, perguntou-lhe:

- Luís se eu saísse da tua vida ias sentir saudades?

- Minha tonta, respondeu, como podes sair da minha vida se tu já és a minha vida. Sem ti a minha deixava de ter sentido. Amor não gosto dessas perguntas, deixam-me com pensamentos negativos e isso não quero.  

*******

Algo não está certo, nem uma única vez Lúcia atendeu o telemóvel, sempre a mesma mensagem "o número que marcou não está disponível, tente mais tarde".

Bom não se vai inquietar, deve ter acabado a carga ou deixou cair o telemóvel. 

Logo ao fim do dia vão estar juntos e isso é o mais importante.

Agora já começa a ficar preocupado, Lúcia não atende e, pior ainda, está atrasada mais de uma hora. Não é normal, nunca aconteceu.

Sabe onde mora, ainda se lembra quando a levou a casa, mas ela pode não gostar é, quase, quebrar-lhe a privacidade. Pode ser mas se está doente e precisa dele? Tem que se decidir, vai mesmo.

O bairro estava muito sossegado, apenas as luzes das habitações davam, alguma, claridade pois o candeeiro público não estava a funcionar.

É aquela porta! Tocou e aguardou.

- Quem é, disse uma voz?

- Boa noite, sou o Luís e preciso saber da Lúcia ! 

 A mesma voz insistiu:

- Não percebi quem é e não mora aqui nenhuma Lúcia. E a estas horas não é prudente abrir a porta.

Luís voltou a insistir:

- Caro senhor eu compreendo o seu receio, fui eu que no dia de chuva deixei, aqui, a Lúcia. Pode confiar. Pode chamar um vizinho, ou quem quiser, para não ter receio mas preciso falar com a sua filha.

Do outro lado o homem pareceu contemporizar:

- Vou ai, não devia mas gosto do seu tom de voz.

Abriu-se a porta e um homem, não muito novo, apareceu com ar sorridente.

- Meu senhor deve haver uma confusão, a minha neta contou de um senhor que lhe deu boleia num dia de chuva, mas ela não se chama como disse, ela é Joana.

O homem tirou o telemóvel e mostrou  uma foto:

- É esta a Lúcia!

- Não, não,  respondeu o morador essa é a minha neta Joana.

O homem estava confuso, mas que importava se era Lúcia ou Joana, desde que fosse ela.

Perguntou:

- Posso falar com ela? Devo ter confundido o nome.

- Tenho pena senhor mas não pode, a minha neta embarcou hoje muito cedo para Luanda. Ela vive com o marido em Angola e esteve em Lisboa a fazer um curso pela Empresa, o curso acabou e ela voltou para o trabalho e para o marido.


Manuel Penteado

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