quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

ACONTECEU

 Esta história, que aqui vos deixo, faz parte das minhas mais gratas recordações. É real, não é apenas uma, estória, fruto da minha imaginação.

                                  **************

Há alguns anos atrás, quando eu ainda sentia a magia do Natal, havia um homem de cerca de 80 anos, alto, elegante e com uns olhos azuis cheios dos mistérios de uma vida longa e dolorosa, que todos os meses, invariavelmente, pelo mesmo dia e, sempre, pelas sete e meia da noite batia à minha porta a pedir esmola.

 

Rogava, sempre, algo que pudesse levar para ajudar a uma refeição. Não queria dinheiro.

 

Vestia, com distinção, um fato já muito puído pelo uso, uma camisa branca deformada e uma gravata quase tão velha como o dono.

 

Era de grande eloquência e senhor de uma sabedoria fruto da experiencia de uma longa vida.

 

Num dia de Dezembro, à hora de sempre, tocou a campainha e, com a distinção habitual, pediu ajuda para aconchegar o estômago.

 

Eu, talvez imbuído pelo espirito de Natal que já se sentia no ar, perguntei-lhe se não queria jantar comigo?

Notei o brilho do azul dos olhos cintilar de forma mais intensa.

 

Timidamente respondeu:

 

-Gostava muito, vou-me sentar aqui nas escadas e agradeço de todo o coração!

 

-Vai jantar comigo, na minha casa, na minha mesa, confirmei eu.

 

                                     **********

Comeu com uma delicadeza que, fazia adivinhar, ser alguém de princípios que a vida abandonou no fim da jornada.

 

Falou pouco, contou, apenas, que tinha feito 81 anos em Novembro, não se lembrava bem do dia. Disse que o filho, que deveria ter agora 45 anos, era advogado mas, que se havia esquecido que tinha um pai velho.

 

Vivia, por caridade, num quarto que uma, bondosa, senhora lhe dispensava.

 

Só pedia, em cada casa apenas, uma vez por mês.

 

Assim, dizia ele, não se tornava maçador e sempre o iam ajudando.

 

Acabada a refeição, recordo como se fosse hoje, olhou-me e, de forma acanhada disse-me:

 

-Há uma coisa que não bebo há longos anos mas, se hoje, me desse um eu aceitava!

 

-Diga, balbuciei, se eu tiver!

 

Olhou-me, quase com timidez, antes de responder:

 

-Era um cafezinho!

 

Bebeu-o com satisfação, pediu licença para se levantar, agradeceu e encaminhou-se para o frio da noite.

 

Não resisti, fui buscar a minha única gabardine e disse-lhe para a vestir.

 

Espreitei pela janela, vi-o desaparecer na esquina da rua. 

 

Figura alta e elegante, a que a minha ex-gabardine dava conforto, para vencer o gélido ar dessa noite.

 

Para mim, esse inverno foi mais frio, era o meu único agasalho e, eu, gostava tanto dele.

 

Mas valeu a pena e nunca me arrependi.

 

Foi a última vez que o vi, não mais apareceu.

 

Provavelmente, o filho, voltou a lembrar-se que tinha um pai.

 

Velho sim!

 

Mas era o seu pai!


Manuel Penteado

Sem comentários: