segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

DOMA ARMÉNIA

 


- Boa tarde senhor Ernesto!

 Esta boa tarde teve uma entoação especial e o senhor Ernesto sentiu isso. Não era habitual uma saudação tão acalorada, pelo contrário, a dona Arménia era sempre um pouco monocórdica, quase despercebida. Hoje foi diferente, entoou de uma forma prolongada, quase, melodiosa.

A dona Arménia era uma mulher de meia-idade, roliça e onde as faces coradas lhe davam um ar de provinciana saudável. O senhor Ernesto pensava que era casada, pelo menos usava uma aliança, mas, de verdade, nunca viu o marido.

Sem deixar de limpar o balcão respondeu no mesmo tom, aliás, como sempre o fazia a todos os clientes e, muito especialmente, aos habituais como era o caso da dona Arménia.

Há anos que religiosamente, por voltas das quatro horas, aparecia para o seu chá Ceilão, esse era certo, só no acompanhamento é que variava, umas vezes queria uma carcaça torrada com muita manteiga, outras, dois scones com doce de chila.

Puxava de um pequeno livro, nunca percebeu o que ela estava a ler, era numa língua estrangeira que ele não percebia, mas a verdade era essa, a dona Arménia, ia beberricando o seu chá com uma elegância de dedos estudada e, ao mesmo tempo, espreitando as letras da pequena brochura.

Depois, deixava o dinheiro na mesa e saia sem dizer nada.

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Hoje foi diferente, começou com essa boa tarde sonante, um sorriso que realçava o brilho rosado das faces e, para surpresa do pobre senhor, não queria chá.

- Mas, titubeou o senhor Ernesto o que devo servir à madame?

- Hoje, caro amigo, quero dois pastéis de bacalhau e uma imperial bem gelada.

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O homem não sabia o que pensar, a cliente estava fora do normal, era sempre tão formal e tão reservada, tinha um certo estilo na forma como deglutia a torrada e a subtileza dos dedos no levar da chávena à boca e, hoje, sorvia a cerveja como os comuns dos mortais nos intervalos das dentadas nos pastéis de bacalhau.

 - Senhor Ernesto, bradou dona Arménia, traga-me outra imperial e mais um pastelinho.

O homem correu, solicito, a atender o pedido, embora pesaroso pela mudança mas, que fazer, o freguês tem sempre razão.

- Aqui tem o seu pedido, disse o senhor Ernesto, mas desculpe nunca a tinha visto beber cerveja!

A mulher deu uma gargalhada e perguntou:

- Se o senhor estivesse preso 15 anos, longos e dolorosos 15 anos, o que faria no dia em que recuperasse a sua liberdade?

- Bom se calhar o mesmo, mas não me parece que tenha estado presa!

- Presa e bem presa, hoje recuperei a liberdade, consegui finalmente o meu divórcio.

- Vá beba uma cerveja comigo, vá lá beba!

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