Já sentia um pouco a idade, eram os ossos, os malditos ossos que o atormentavam, o pior eram os joelhos, uma dor aguda e dificuldade em mover as pernas. Depois, conforme se ia mexendo as coisas compunham-se um bocadinho.
O neto dizia:
Vai aquecendo e melhora!
Se calhar tinha razão.
Já pediu ao filho, Afonso, que lhe
mandasse vir uns daqueles comprimidos que anunciam na televisão, mas torto com
era, dizia que eram charlatanices para apanhar o dinheiro aos papalvos.
O filho era um sovina, isso é que era,
ficava-lhe com o dinheiro da pensão, era pouco mas era a sua pensão.
É verdade que não lhe faltava nada, até
podia beber uma pinga, ou um café, no Zé da Esquina, que o filho deu ordem,
para o que fosse, ele depois ia pagar.
Mas a mezinha, da televisão, dizia que
era uma banha da cobra. Mas não é! O Marcelo toma e diz que está melhor, coxeia
na mesma mas diz que já não tem dor, só não percebe uma coisa "se não lhe
dói porque será que continua a coxear?". Quando o vir já lhe pergunta.
Há uma coisa que o preocupa, antes
lembrava-se de tudo, mas mesmo de tudo, até sabia os dias em que os filhos e os
netos faziam anos, nunca se esquecia.
Agora já lhe escapam muitas coisas. É verdade que tem 81 anos e,
que depois que a sua Emília morreu, ficou muito abalado, mas ele sabia que as
coisas eram mesmo assim, a pobrezinha era muito doente e aquela falta de ar não
a ajudou nada, mesmo nada.
Um dia, coitada, sentiu-se mal, ainda a levaram para o hospital
mas não havia nada a fazer.
Só não percebe, gostava muito da sua
Emília, foram 52 anos de casamento mas não sentiu muito a sua morte. Foi mais o
pensar que não tardava lhe podia calhar a vez.
Ontem foi dar uma volta, para
desentorpecer as pernas, e não é que às tantas se perdeu.
Não sabe como fez aquilo e já estava a
ficar preocupado quando ouviu:
- Então Tóino! Que anda a fazer para
estas bandas?
Era a Benedita, não quis dar parte
fraca, por isso disfarçou:
- Olha rapariga ando a estender as
pernas e, agora já estava confuso, não costumo vir para estes lados.
- Ai Tóino, Tóino, que se passa contigo?
Não tardava muito estavas no pinhal e ainda te perdias!
- Quem, eu? Achas que me perdia? Conheço
estes caminhos como os dedos da minha mão. Estou só cansado, mais nada!
- Vá, anda comigo! Exclamou Benedita,
sempre vamos acompanhados.
Voltou a casa, sentou-se no sofá e
adormeceu. Foi o filho que o foi chamar:
- Então pai hoje não tem fome? Dorme e
nem se lembra de jantar.
- Não, respondeu, não estou a dormir!
Estava só a pensar na minha vida!
- Mas que se passa consigo? Insistiu o
filho, a Benedita disse-me que andava perdido ao pé do pinhal do Cerco?
- Quem eu? Respondeu, deves estar a
mangar comigo, não vou para esses sítios há muito tempo e não vejo a Benedita
desde o funeral da tua mãe. Estás sempre na brincadeira! Vamos lá jantar porque
tenho fome.
Manhã, não muito cedo, depois do
pequeno-almoço, saiu para ir ao café do Zé da esquina, fazer um joguinho de
dominó com quem lá estivesse. Fosse quem fosse, ia para ganhar e alguém ia
pagar as minis.
A cabeça estava num reboliço, quando deu
por ele estava numa estrada que não conhecia, devia ser nova pois nunca a tinha
visto antes.
São coisas desses tipos da câmara, chegam mudam as ruas sem
dizer nada e de repente uma pessoa pensa que tem que virar à direita, sempre
foi assim, e chega e agora já é a esquerda, quando não é em frente.
Mas a estrada não está ali para nada,
nem um carro, nem viva alma, foi desperdício de dinheiro fazer uma estrada onde
não havia carros. Estes autarcas!
Ia atravessar aquelas arvores para
encontrar, de certeza, uma rua conhecida, no outro lado, e não tardava estava
na praça e daí já se orientava.
Ai esta cabeça! Quem havia de dizer que
se ia desorientar.
Estava tanto calor e as pernas já
reclamavam descanso, que ia sentar-se um bocadinho à sombra daquela árvore
grande. Parecia uma oliveira, mas não se lembra de nenhum olival neste sítio.
Mas está lá e se está é de alguém. De quem será?
Bem vai descansar um pouco, os torrões
fazem roer o rabo mas dá para cochilar um bocadinho.
********
Afonso estava a ficar preocupado, oito
horas e o pai que era, sempre, o primeiro quando chegava a hora da janta sem
aparecer.
Já foi ao café e dizem que o pai não
apareceu por lá hoje, nem neste nem em nenhum dos poisos habituais.
Foi à polícia e aos bombeiros, pediu
ajuda aos vizinhos mas hoje pouco puderam fazer a noite estava a cair e era
difícil a busca, amanhã bem cedo iam dividir-se e fazer uma batida a todos os
cantos e espreitar todos os poços.
Não era que pensassem em algum ato do Ti Tónio, mas podia ter
havido alguma distração, era melhor espreitar.
Ainda mal tinha rompido a madrugada e, o
pessoal dividido por grupos e orientados pelos bombeiros, mais experientes,
começaram a vasculhar todos os cantos.
O pinhal, como o mais provável, foi esquadrilhado de forma
minuciosa, não houve moita nem recanto que ficasse por observar.
O Portela levou dois cães, bons farejadores, para ajudar mas os
bichos andavam mais interessados nas rolas que esvoaçavam entre os pinheiros.
A noite não tardava e embora os homens
se tenham revezado o desalento começava a invadir a moral de todos.
Os piores pensamentos surgiam e, em surdina, já se ouvia a
hipótese de o velhote puder estar morto em algum canto, ao fim do dia arrefece
e nem todos aguentam uma noite, sem comer e ao relento.
Às 8 horas era noite, nem com lanternas
se conseguia enxergar no meio dos pinheiros e das urzes, era hora de desistir e
recomeçar amanhã de manhã.
******
Na casa do Afonso, também do Ti Tónio, o
desalento era total, até os netos sempre na brincadeira, estavam num sossego
que doía.
Jantaram, mas parecia, mais, um velório
pois só o barulho dos talheres quebrava o silêncio que enchia a casa.
Afonso recriminava-se, já devia ter
notado que o pai não estava o mesmo, aqueles esquecimentos, aquela falta de
orientação era indício de algo de não estar muito bem.
Começava a ter receio e só pedia a Deus
que o encontrassem. Se possível bem.
Já passava da uma da madrugada quando
duas pancadas fortes, na porta, tiraram Afonso dos seus pensamentos.
Ficou muito assustado, pensou o pior mas correu para ver quem
batia.
Abriu a porta e, na sua frente, o pai
sujo de terra e com ar muito cansado.
- Oh pai que susto pregou a toda a
gente! Meu Deus obrigado.
Entra e vai descansar que eu trato de ti.
Mas por onde andastes perdido?
Olhou o filho sem perceber bem toda a
aflição.
- A culpa é desses da Camara, que mudam
as ruas, vê lá tu que até puseram um olival no caminho do café do Zé da
Esquina. Entrei nele e se não fosse a tua mãe não conseguia dar com o
caminho.
Foi ela que me encontrou e me trouxe para casa.
Não sei o que seria sem ela!
Fevereiro 2021
Manuel Penteado
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