Não sabe
como aconteceu, um dia de repente, acordou naquela cama, naquela casa, naquela
terra mas não sabia como.
Não
conhecia nada do que o rodeava, era tudo tão estranho.
Nunca teve tal cama, fofa, cheia
de cor e de grandes almofadas aconchegantes, lençóis de seda e edredão de penas
suaves e macias.
O quarto
era imenso, paredes de uma cor pérola, na parede, a encimar a cama, uma bela
pintura, "A Maja nua" de Delacroi.
O tecto,
em abóbada, era um enorme fresco de uma reprodução de um céu estrelado, imenso
e profundo que o deixava numa grande pequenez.
Espreitando, pela imensa janela, via uma cidade que lhe era, totalmente, desconhecida, ruas largas, transito muito ordenado, pessoas passando apressadas e, aconchegadas em grossos casacos, para se defenderem do frio que se adivinhava nos restos de neve, ainda visíveis, nos passeios.
Era tudo
tão estranho.
Beliscou
as maçãs do rosto, doeu, era sinal que não estava num sonho, era real.
A casa, a
sua casa, tinha um quarto miserável, com uma cama, asseado, mas com lençóis já
amarelados, pelo uso e uma manta cor de rato. Paredes desbotadas, onde a
humidade tinha pintado manchas escuras de bolor, a janela era um postigo, a
precisar de pintura, com um vidro martelado no centro.
Na parede um velho quadro, herança da avó, de um anjo protegendo duas crianças junto a uma fonte.
A porta, que dava para o
corredor, era uma cortina presa por esticadores a dois camarões de latão amarelo.
Espreitando pela janela apenas
campos, verdejantes, e árvores apontando ao céu.
Agora
acorda assim, num cenário quase irreal, no desconhecido, numa terra com prédios
onde cabia, de certeza, a sua aldeia. Já se beliscou e está bem acordado, se
não fosse um leve torpor na cabeça diria que se encontrava totalmente bem.
Estava com receio, diria mesmo
com medo, de deixar o quarto, não sabia o que estava para além da porta que o
dividia do mundo lá fora.
Vestiu a roupa que estava
pendurada, não se lembrava mas, se calhar, era dele.
Saiu.
Era um corredor imenso, chão
brilhante, com uma passadeira vermelha, presa com grampos dourados. Nas paredes
quadros, com paisagens, e alguns espelhos em molduras trabalhadas numa espécie
de talha.
Ao fundo
um elevador, marcou piso 0.
Saiu num enorme átrio, onde um
sujeito, de farda azul com botões
doirados, o saudou com um:
- Good
morning mister Russell
Olhou
para todos os lados. Era para ele, o senhor deve estar enganado, fez confusão,
falou numa língua estrangeira e chamou-o de um nome que não era o dele.
Sabia que
era inglês, não sabia falar mas percebeu, que ele tinha dito bom dia senhor
Russell, já tinha ouvido em muitos filmes, mas começava a ficar preocupado.
Onde
estava? Porque e como veio parar aqui?
Ainda se soubesse falar inglês,
mas só conhecia palavras dispersas.
Olhou o
edifico donde acabou de sair e pela placa no frontispício, ficou a saber onde
passou a noite.
Até há pouco estava, apenas,
preocupado mas agora começava a entrar em pânico, o terror começou a
infiltrar-se nos ossos e a percorrer-lhe o corpo, como se lhe tivessem
injectado uma dose de qualquer droga.
Começava
a ter fome. Verificou os bolsos, se tinha uma roupa também devia ter carteira
e, quem sabe, até documentos.
Tinha um cartão, pelo aspeto, era
uma carta de condução.
Também encontrou diversos
cartões, mas não sabia bem para o que eram. Mas tinha bastantes notas de Libra,
mesmo muitas, e também cartões multibanco de três bancos. Mas não sabia
códigos.
Tinha
dinheiro, ia comer, o resto deixava para mais tarde.
Foi espreitando até que reparou
num restaurante onde se iam servir e à saída pagavam, sem necessitar de muita
conversa, era um Garfunkel's.
Andou
toda a tarde, o dia estava muito frio, andar ajudava a manter o corpo a
funcionar.
Ficou a conhecer um pouco da
cidade, era grande e muito ordenada.
Só tinha pena de não perceber o
que diziam, sabia que era inglês, lembrava dos filmes de televisão os que
ia escutando aqui e ali.
Ia voltar, ao mesmo restaurante,
e depois ia tentar o mesmo hotel.
Quando
cruzou a porta, o mesmo porteiro, com a mesma farda, muito solicito
aproximou-se com um:
-Your key, mister Russell!
Estendeu-lhe o cartão, da porta,
do quarto.
Bom, hoje, já tinha onde
pernoitar.
Estava um pouco nervoso, sempre
se chamou Ernesto e, agora, era mister Russell, como se isso fosse nome de
gente.
Imaginem!!
Estendeu-se na cama e ficou e
admirar aquele imenso céu, estrelado, era uma pintura mas até parecia que
algumas das estrelas cintilavam.
A matrona
da pintura também não estava nada mal.
O grande problema era saber como
tinha vindo aqui parar, quem era, como tinha estas roupas chiques, a carteira
recheada, uma carta de condução se nunca tinha pegado num carro, só na
motorizada ou na bicicleta, mas carro e nesta terra, onde andam ao contrário.
Isso era impossível.
Adormeceu,
enquanto os olhos passeavam naquele mar de estrelas, que pareciam querer
brilhar naquela imaginada dimensão.
Acordou,
esfregou os olhos tentando lobrigar, por entre o lusco-fusco, o que o rodeava.
Estranho.
O quarto era diferente, sem
quadros, sem abóbadas pintadas, sem edredão de penas.
Estava numa cama articulada, um
tubo enfiado, com um cateter, no braço. Estava ligado a um saco de soro,
pendurada num suporte, tinha os braços imobilizados por ligaduras e um tubinho
com uma cânula de dois pinos enfiados no nariz.
Uma
menina de uma bata branca entrou no quarto e exclamou:
- Bem
vindo senhor Ernesto, finalmente acordou. Esteja calmo! Vou chamar o doutor!
Saiu ligeira, reparou que era
muito jeitoso, mas foi um mero notar.
Voltou acompanhada por um
sujeito, devia ser o médico. Simpático, com um sorriso a rasgar o rosto. Um
fino bigode dava-lhe um ar de David Niven, voz suave e aspecto de muito
competente.
Olhou Ernesto
com um sorriso:
- Então, caro senhor, conseguiu
dar um exemplo de como lutar pela vida, foi formidável nunca desistiu.
Chegamos a recear muito, mas
mesmo muito, mas conseguiu ser muito forte.
Como se sente?
- Senhor doutor, ainda ontem eu
era uma pessoa diferente, a viver num país distante, num hotel especial, com
boa roupa e muito dinheiro no bolso. Tinha um quarto que me aproximava do
firmamento e, de repente, acordo todo estropiado, ligado por tubos, enrolado em
ligaduras, com dores em todos os sítios. Não sei se sonhei ou se estou a
sonhar!
O doutor não conseguiu evitar um
sorriso, mas respondeu:
- Deve ter sonhado e teve sorte!
Podia ter sido o seu maior pesadelo.
Março 2021
Manuel Penteado
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