- Sim, estou a trabalhar num crime muito
bonito-talvez a minha obra-prima (Nicholas Blake)
Estava bem morto, não havia dúvidas.
Bastava olhar o aspecto daquele furo que tinha no meio da testa, era um
buraco negro onde o sangue, já coagulado, dava um aspecto, quase, sinistro. No
rosto, apenas a lividez, destoava na serenidade e naquele espécie de sorriso,
que morreu antes de ter tempo de nascer.
O polícia era enorme e tinha uma forma de falar, demasiadamente enfatuada
para ser verdadeira, repetia, demasiadas vezes, as palavras mas de forma tão
casual que parecia ser normal.
Era da judiciária, informou, e estava confuso porque as coisas não pareciam
normais, havia muitas questões para explicar.
O outro, o mais novo, também era polícia mas devia ter pouca prática,
seguia o colega e tentava adivinhar-lhe os pensamentos.
- Sabes, disse o mais velho, que isto não me cheira muito bem, há qualquer
coisa que não bate certo!
- Mas, perguntou o outro, o que achas que não bate certo? O gajo levou um
tiro nos cornos, e bateu a bota, só falta saber quem o fez!
- Abre os olhos, abre bem esses olhos, e diz que te parece tudo normal! Vá,
diz lá que não vês que isto não bate certo? Porra!
- Bem, mantém a calma e diz o que achas que não bate certo? Insistiu o mais
novo.
- Olha bem para este tipo, tem um buraco na testa, que parece a boca do
inferno, e onde está o sangue? Apenas um coágulo seco, só isso, nem mais um
pingo. O gajo foi morto, noutro local, e trazido para aqui, não é trabalho de
uma só pessoa. O médico, depois da autópsia, vai confirmar se tenho ou não
razão. E ainda há mais, a bala entrou e saiu e onde está a merda do furo que
devia ter deixado no cadeirão?
E quem é o marmanjo, todo aprumadinho, com um sorriso de Gioconda, mesmo
depois de morto, fato de muitos Euros, camisa Pierre Cardin, gravata de seda
italiana, um anel que vale mais de que um ano do meu ordenado. Não houve roubo
mas a carteira desapareceu. Nem um único documento de identificação.
- Mas quem é a vitima? Perguntou o mais novo.
O colega esfregou a orelha, parecia um tique, já o tinha feito por diversas
vezes. Parecia estar a procurar as palavras antes de responder:
- Isso é o que mais me intriga, ninguém o conhece! Temos que descobrir, vai
ser um longo trabalho. A cabeleireira, abriu às oito horas a porta, e apanhou
um cagaço quando viu o homem sentado e, ainda maior, quando olhou para o,
enorme, buraco na testa.
Estava meia aparvalhada e só sabia dizer "mal-empregado era tão bonito!"
*******
O mais velho era o inspector Morgado, o outro era o agente Martins.
Ficaram como investigadores do caso do “sorriso enigmático”, foi assim que o baptizaram, talvez
pelo último esgar da vítima.
O Inspector Morgado, era uma pessoa difícil, pensava 24 horas no trabalho e
um fracasso era, para ele, algo impensável.
A mulher fartou-se de esperar e um dia, sem se despedir, voltou para donde
viera, meteu-se ao caminho e desapareceu. Deixou um bilhete muito lacónico
"a paciência tem limites".
Deu a entender que voltava para casa dos pais, mas todos sabiam que tinha
fugido com um bailarino inglês, que conheceu num espectáculo.
O agente Martins era diferente, apreciava a vida e não a queria
viver, na obsessão, de casos para resolver. Não fugia ao trabalho mas, sempre
que podia, fugia dele. Havia tantas coisas interessantes para fazer.
*****
- Bem, disse o inspector, vamos fazer o ponto da situação. O morto aparece
sentado no cadeirão dum cabeleireiro, nunca ninguém o tinha visto, antes, por
aqueles lados, foram consultados todos os registos, todos os
desaparecimentos comunicados, fotos espalhadas, incluindo as publicitadas nos
jornais, as impressões digitais não foram identificadas, nada, mesmo nada. A
autópsia foi conclusiva, morreu de um único tiro e perdeu muito sangue. Devia ter
uma idade entre os 28 e 33 anos.
Estive a observar-lhe as mãos e, concluo que deve ter uma profissão que não
deixa desgaste nas mesmas, muito limpas e sem marcas. Ou advogado, médico ou
menino rico que não faz nada a vida.
O agente Martins, interrompeu:
- Mas como explicas que o tenham abatido num lugar qualquer, onde devem ter
ficado marcas, e o tenham levado para o salão de cabeleireiro sem ninguém ter
dado por nada. O gajo não é muito grande mas sempre deve pesar uns 70 quilos!
O inspector responde, quase, maquinalmente:
- Pesa, segundo o médico legista, à volta de 67 quilos já considerando a
perda de todos os fluidos. Era muito leve!
A hora da morte foi, segundo eles, entre a meia-noite e as três da
madrugada.
Não foi obra de uma única pessoa, foi mais do que uma, talvez mesmo.
um gangue, ajuste de contas, ou coisas da droga. Sei lá!
- Vai ser lixado, disse o agente, temos pela frente um bico-de-obra.
- Vai mesmo, respondeu o inspector, mas vai ser a tua grande oportunidade,
aquela que há muito procuravas. Fica tudo à tua responsabilidade mas, já sabes,
contas sempre com o meu apoio.
Tens todos os elementos, o relatório da autópsia, dos interrogatórios e o
resultado de todas as diligências
- Mas o chefe não se sente bem? Perguntou Martins.
- Estou bem, mesmo muito bem, mas preciso de algum tempo, não posso
continuar neste sufoco. A Andreia voltou para mim, pediu para darmos uma
oportunidade à nossa relação e vamos dar! Quero cumprir a minha parte.
- Faz bem chefe! Julguei que a Andreia tinha ido para Londres, até falaram
que tinha uma relação com um bailarino! As pessoas inventam mas, se voltou, é
porque sentiu saudades suas.
- Pois foi, as pessoas dizem coisas. Mas não importa! Voltou, não se deu
bem e se calhar, como tu dizes, teve saudades minhas.
*****
Hoje o inspector Morgado parecia estar, totalmente alheio. Estava, ali, mas
o pensamento, notava-se que, andava longe, muito longe.
Abria uma pasta e parecia olhar as páginas mas era apenas uma forma de
matar o tempo. Fazia a esferográfica rebolar, entre os dedos, como se fosse um
brinquedo.
O agente Martins notava que algo estava mal, mas tinha receio de perturbar
aquele alheamento. Mas, era muito amigo, e tinha que o fazer.
Queria fechar o processo, propor o arquivamento.
Tomou coragem, e avançou:
- Então chefe, parece não estar num dia sim!
- E não estou Martins! Não estou mesmo! A Andreia, e eu, chegamos à
conclusão que não dá. Voltou, para donde nunca devia ter vindo. Afinal, como
dizias, não teve saudades minhas.
- Pois chefe, quando não dá, o melhor é cada um ir à sua vida.
Mas, agora, queria a sua opinião sobre o caso do “Sorriso Enigmático”, acho que o devíamos
mandar arquivar.
- Mas, respondeu o inspector, não avançastes nada?
- Oh chefe, avancei muito mas, nada de interesse, vou propor arquivar o
caso. É estranho, há muita confusão e não leva a nada. O morto era um bailarino
inglês.
Chegou a Lisboa, num voo, na véspera de encontrarem o cadáver.
Acho que, no mesmo, onde veio a sua ex-companheira, mas agora isso não
interessa.
Vou mandar arquivar. Acha bem?
O inspector notou o sorriso sardónico do agente, mas fingiu não notar,
limitou-se a confirmar:
- Faz o melhor, o processo é teu, tu mandas nele. Não percas tempo,
fizestes um bom trabalho. Parabéns! Tu é que mandas. Tens o meu, total, apoio.
Faz o que está na tua consciência! És um bom agente.
- Pois chefe, a minha consciência, é que me tem lixado. Vou mandar
arquivar!
Afinal o tipo nem era conhecido e nem temos local do crime.
- Não é, chefe?
Abril 2021
Manuel Penteado
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