segunda-feira, 19 de abril de 2021

SENHA 515

Quem está a seguir?



Era uma tarde de fevereiro, fria e chuvosa. A vontade de sair de casa depois de um aconchegado almoço em família não era grande. O dever, contudo, chamava-o. O professor Ramiro de Castro tinha pela frente duas horas de aulas o que era sempre muito estimulante para o seu espírito inquieto. O interesse dos alunos pela matéria, mesmo quando os assuntos eram mais áridos, fascinava-o. O relógio de pulso indicava-lhe que ainda tinha tempo suficiente para passar pela loja, um amplo espaço comercial onde se vendia de tudo desde o mais sofisticado computador à mais simples esferográfica. Havia duas portas distintas, uma para a entrada e outra para a saída parecendo antecipar as medidas preventivas do famigerado Covid-19 que estava prestes a chegar.

Entrou, virou à esquerda e dirigiu-se ao balcão onde se reproduzem documentos e efetuam outros serviços afins. Vinha plastificar uns documentos, um dos quais o “cartão de estacionamento para pessoas com deficiência”. O professor tem uma séria lesão na coluna que se manifesta numa acentuada e sempre crescente dificuldade de locomoção. Enfim, uma herança provavelmente trazida da guerra em Moçambique.

Com a recente alteração da lei, aquele cartão de cor azul, tem um campo de utilização mais vasto do que anteriormente, uma vez que está afeto à própria pessoa com deficiência, ou seja, se Ramiro for transportado, por exemplo, no automóvel do Vítor Azinhais – um amigo de longa data – este pode estacionar nos locais destinados a deficientes. Antigamente o cartão era exclusivo da pessoa e do carro de que era proprietário.

Ao querer tirar a senha para ordeiramente aguardar a sua vez, uma senhora com toda a simpatia apontou para cima do dispensador. Agradeceu e discretamente comparou o número da que lhe tinha sido gentilmente apontada com o que estava em primeiro lugar da “linha de partida”. Queria confirmar se o número era recente sem deixar transparecer que estava a desconfiar da generosa sugestão. De facto, os números eram consecutivos e o 515, então já na sua mão, fez com que Ramiro confirmasse que era um homem de sorte. Era uma capicua e as capicuas são sempre um bom presságio para ele desde que ao entrar no ensino secundário – já lá vão umas boas dezenas de anos – lhe atribuíram o número 414. Foi um número que, como costuma dizer, lhe ficou agarrado à pele. Lembrou-se também, com assinalável agrado, do dia em que começou a lecionar na Universidade, 11 de novembro de 2011 (11-11-11), outra capicua. 

Estes números, que tanto se podem ler da esquerda para a direita como da direita para a esquerda – “capicua” tem origem na língua catalã, “cap i cua”, “cabeça e cauda” – sempre o fascinaram. Tem-lhes dedicado algum do seu tempo, como pura recreação mental. Recordou que dois dias antes, o calendário litúrgico tinha assinalado o dia de Nossa Senhora das Candeias, data de grande significado na crença popular, por ser uma indicadora “infalível” de como irá decorrer o resto da estação invernosa: “se vier a rir é o inverno para vir; se vier a chorar é o inverno a acabar”. Mas a data, 2 de fevereiro, foi referida este ano, em muitos jornais por outro motivo: por se traduzir numa capicua (02022020) que, por sua vez, encerra em si outras duas: é o trigésimo terceiro dia do ano que terminará ao fim de mais 333 dias.

Ainda absorvido pelos seus pensamentos, Ramiro pôde observar que naquele balcão estavam poucas pessoas. Um jovem casal com cerca de trinta anos e uma expressão de extrema felicidade no rosto: afinal vinham escolher cartões de convite para o seu casamento; a tal senhora simpática acompanhada de uma outra com cara de poucos amigos. Pelos traços fisionómicos pareciam ser irmãs mas o contraste de temperamentos era evidente. Completavam o cenário uma moça que acabara de ser atendida e estava prestes a sair, a funcionária e, é claro, o professor.

A rapariga do balcão, após ter dado o troco e a fatura à jovem cliente, perguntou quem estava a seguir.

– Agora somos nós – respondeu o noivo.

– Não são, não senhor! – atalhou a da cara de poucos amigos. 

– Qual é o número da sua senha?

– Nós não tirámos senha. Não sabíamos que era preciso. 

– Mas evidentemente que é preciso!

A discussão prolongou-se com cordialidade de um lado; azedume e intransigência do outro. A senhora simpática lá ia pedindo para a outra ser mais flexível e não estragar aquela satisfação genuína espelhada nos rostos dos “pombinhos” que, afinal, até tinham chegado antes delas. Por fim, o bom-senso venceu a teimosia e o casal lá foi atendido sem que a mulher conseguisse abandonar a sua expressão de tigre enjaulado.

Com os noivos de saída voltou-se a ouvir a pergunta de sempre e, de súbito, Ramiro avançou e disse com firmeza para a funcionária que era ele.

A mulher que com grande sacrifício estivera calada durante alguns minutos não se conteve, afirmando que era ela a portadora da senha 514 e que quando o Ramiro chegou já lá estava.

Então, o professor, denotando grande calma (só aparente porque por dentro estava a ferver) respondeu que não costumava usar a prioridade que a lei lhe concedia tanto que até tinha tirado uma senha. Contudo, perante tanta severidade não prescindia da sua vez. Ao mesmo tempo, puxou do cartão prestes a ser ensanduichado entre duas folhas de plástico.

No meio de um silêncio de cortar à faca lá foi dizendo o que pretendia: plastificação de três documentos.

A funcionária retirou-se para execução do trabalho findo o qual regressou ao balcão onde o ambiente ainda era silencioso mas irrespirável.

– Quanto é? – perguntou o Ramiro. 

– São quatro euros e cinquenta e nove cêntimos. Quer o número de contribuinte na fatura?

O professor preparava-se para responder. Desta vez estava tentado a dizer que sim. A sorte que lhe batera à porta com a senha 515, poderia arrastar consigo a atribuição de um “certificado do tesouro poupança” no próximo sorteio da Autoridade Tributária. Não teve tempo, porém.

De súbito, a mulher mal-humorada avançou energicamente para a caixa, com uma nota na mão e disse que fazia questão em pagar a plastificação dos documentos.

A rapariga, boquiaberta, não sabia o que havia de fazer. Ramiro, afirmava que não consentia que isso acontecesse: a conta era sua e devia ser ele a pagá-la.  Todavia, perante esta cena tão inesperada, a funcionária, ainda atónita, no meio de enorme hesitação, acabou por aceitar o dinheiro da mulher, apesar dos enérgicos protestos do professor que por fim, embora contrariado, se sentiu inapto para reverter a situação e disse para a sua “benfeitora”:

–  Muito obrigado, minha senhora. Já que é tão generosa, vou passar a vir aqui todos os dias.

– Pode vir à vontade. Se eu cá estiver, pago-lhe sempre.

O velho docente olhou para o relógio. Não havia tempo a perder. Faltavam apenas 20 minutos para o começo da aula e a Universidade ficava no outro extremo da cidade. Com um ligeiro encolher de ombros, dirigiu-se para a porta de saída. Não foi um encolher de ombros de indiferença ou desinteresse. Foi antes uma expressão de quem não consegue entender o comportamento humano, esse mundo maravilhoso mas por vezes tão indecifrável.






1 comentário:

Manuel disse...

Gostei, um bom conto com uma ótima mensagem.