sexta-feira, 23 de abril de 2021

UM CONTO QUASE QUIMÉRICO


 

Tinha um ar de princesa, um sorriso de anjo e a beleza de uma Afrodite.

O nariz, um pouco arrebitado, dava-lhe um ar traquina que as duas covinhas na face acentuavam.

Os olhos eram grandes e profundos, mas possuídos de uma tristeza que o sorriso nos lábios não sabia disfarçar.

Quando nasceu, há 19 anos, todos pensaram que não iria vingar, prematura e tão frágil, que a família quando espreitava a incubadora ficava convencida que a menina não passaria desse dia.

Quiseram os desígnios do destino que aquele bebé, tão fraco, se transformasse numa bela moça de olhos tristes.

Quando fez 15 anos, uma doença, estranha e misteriosa, tomou conta dela de tal forma que o padre lhe chegou a dar a extrema-unção, mas de um dia para o outro, o rosto voltou a tomar cor. Não conhecia os pais, olhava-os de uma forma estranha e começou a falar uma língua desconhecida e que ninguém entendia.

Fixava os que a rodeavam como se não estivessem ali, não os percebia e não se fazia entender.

Arengava em palavra estranhas, frases entoadas em sons semelhantes a estalidos doces e musicais que se perdiam, sem que os que a escutavam conseguissem perceber algo do que dizia.

A família, desiludida, desistiu da medicina e enveredou pelos bruxos, curandeiros, pais de santos e a todos os que apregoando poderes e sabedorias iam fazendo rezas, mesinhas, imolações, sacrifícios e tudo o que a imaginação lhes permitia, para ir esvaziando os bolsos dos pais da Marcela.

Um dia, no meio de uma sessão mais emotiva, saltou com uma fúria que ninguém esperava e esgatanhou barbaramente a cara do curandeiro que fugiu, espavorido, com a face fortemente dilacerada.

Depois voltou para a cama e adormeceu num sono calmo e tranquilo.

Quando acordou estava serena, de nada se lembrava, nem da doença, nem da agressão e muito menos da língua estranha que, diziam, que tinha falado.

Havia, no entanto, algo que não se atreveu a contar, ouvia os pensamentos dos outros e sabia o que ia acontecer.

Era estranho perceber que o futuro lhe estava sempre tão presente.

O tempo estava agreste e o vento, com fúria, fazia estremecer os estores das janelas, enquanto a chuva fustigava impiedosamente os que se arriscavam.

Marcela espreitava através dos vidros os que, afoitamente, se atreviam a enfrentar a borrasca que com tanta violência se tinha abatido.

Olhava e os seus sentidos iam antevendo as agruras e as alegrias dos que se arriscavam a cruzar a rua.

Aquele ali, tentando segurar um guarda-chuva que o vento queria roubar, ia imaginando o que iria dizer a uma colega que tinha elegido como dona do seu coração.

A idosa, encolhida na porta, esperando uma aberta, pensava no frigorífico vazio e nas goteiras que neste momento pingavam no cubículo onde parecia viver.

Na esquina um homem pensava de forma estranha, gostava da mulher e ao mesmo tempo desejava que partisse e o libertasse do fardo da doença que a apoquentava. Já tinha pensado em trocar a hora dos comprimidos ou, mesmo, esquecer alguns de forma a libertá-la do sofrimento e, a ele, de um fardo que apesar de todo o amor, se estava a tornar muito pesado.

Marcela perscrutava todos estes pensamentos e sentia todos os dramas e chorava baixinho sabendo que nada podia fazer.

Acordou com um ruído estranho no seu quarto, algo de etéreo, resplandecente de luz e que pairava como uma nuvem.

Uma melodia suave, enchia de doçura, enquanto fragrâncias que ultrapassam a imaginação deixavam caricias que inebriavam.

Uma voz, tão suave como uma pena deslizando numa suave brisa, clamou:

- Marcela és a eleita e a força do Senhor está contigo. Tudo o que quiseres será feito.

Depois, a miragem diluiu-se em mil estrelas iridescentes que se esfumaram como por encanto.

Acordou pela manhã com a estranha sensação de que, a partir de agora, a sua vida mudaria e que tudo iria ser diferente.

Espreitou da sua janela os dramas da rua, mas o apaixonado não estava, a idosa tinha desaparecido e, até o marido que desesperava, com a doença da mulher, estava ausente.

Olhou na procura de dramas para dar a sua ajuda mas, todos pareciam felizes com o sol a brilhar, os rapazes corriam alegremente atrás de uma bola colorida, as meninas saltavam à corda numa alegre algazarra e os velhotes na esplanada do café olhavam de soslaio as mini-saias que passavam.

Marcela estava triste porque tinha poderes mas não tinha onde os usar. 

Entrou em depressão, deixou de ouvir os pensamentos dos outros, tornou-se agressiva e caiu, novamente, num sono profundo.

 

 

Abril 2021

Manuel Penteado

1 comentário:

Lídia Ramalho disse...

Sempre contos muito interessantes.