Tinha
um ar de princesa, um sorriso de anjo e a beleza de uma Afrodite.
O
nariz, um pouco arrebitado, dava-lhe um ar traquina que as duas covinhas na
face acentuavam.
Os
olhos eram grandes e profundos, mas possuídos de uma tristeza que o sorriso nos
lábios não sabia disfarçar.
Quando
nasceu, há 19 anos, todos pensaram que não iria vingar, prematura e tão frágil,
que a família quando espreitava a incubadora ficava convencida que a menina não
passaria desse dia.
Quiseram
os desígnios do destino que aquele bebé, tão fraco, se transformasse numa bela
moça de olhos tristes.
Quando
fez 15 anos, uma doença, estranha e misteriosa, tomou conta dela de tal forma
que o padre lhe chegou a dar a extrema-unção, mas de um dia para o outro, o
rosto voltou a tomar cor. Não conhecia os pais, olhava-os de uma forma estranha
e começou a falar uma língua desconhecida e que ninguém entendia.
Fixava
os que a rodeavam como se não estivessem ali, não os percebia e não se fazia entender.
Arengava
em palavra estranhas, frases entoadas em sons semelhantes a estalidos doces e
musicais que se perdiam, sem que os que a escutavam conseguissem perceber algo
do que dizia.
A
família, desiludida, desistiu da medicina e enveredou pelos bruxos,
curandeiros, pais de santos e a todos os que apregoando poderes e sabedorias
iam fazendo rezas, mesinhas, imolações, sacrifícios e tudo o que a imaginação
lhes permitia, para ir esvaziando os bolsos dos pais da Marcela.
Um
dia, no meio de uma sessão mais emotiva, saltou com uma fúria que ninguém
esperava e esgatanhou barbaramente a cara do curandeiro que fugiu, espavorido,
com a face fortemente dilacerada.
Depois
voltou para a cama e adormeceu num sono calmo e tranquilo.
Quando
acordou estava serena, de nada se lembrava, nem da doença, nem da agressão e
muito menos da língua estranha que, diziam, que tinha falado.
Havia,
no entanto, algo que não se atreveu a contar, ouvia os pensamentos dos outros e
sabia o que ia acontecer.
Era
estranho perceber que o futuro lhe estava sempre tão presente.
O
tempo estava agreste e o vento, com fúria, fazia estremecer os estores das
janelas, enquanto a chuva fustigava impiedosamente os que se arriscavam.
Marcela
espreitava através dos vidros os que, afoitamente, se atreviam a enfrentar a
borrasca que com tanta violência se tinha abatido.
Olhava
e os seus sentidos iam antevendo as agruras e as alegrias dos que se arriscavam
a cruzar a rua.
Aquele
ali, tentando segurar um guarda-chuva que o vento queria roubar, ia imaginando
o que iria dizer a uma colega que tinha elegido como dona do seu coração.
A
idosa, encolhida na porta, esperando uma aberta, pensava no frigorífico vazio e
nas goteiras que neste momento pingavam no cubículo onde parecia viver.
Na
esquina um homem pensava de forma estranha, gostava da mulher e ao mesmo tempo
desejava que partisse e o libertasse do fardo da doença que a apoquentava. Já
tinha pensado em trocar a hora dos comprimidos ou, mesmo, esquecer alguns de
forma a libertá-la do sofrimento e, a ele, de um fardo que apesar de todo o
amor, se estava a tornar muito pesado.
Marcela
perscrutava todos estes pensamentos e sentia todos os dramas e chorava baixinho
sabendo que nada podia fazer.
Acordou
com um ruído estranho no seu quarto, algo de etéreo, resplandecente de luz e
que pairava como uma nuvem.
Uma
melodia suave, enchia de doçura, enquanto fragrâncias que ultrapassam a
imaginação deixavam caricias que inebriavam.
Uma
voz, tão suave como uma pena deslizando numa suave brisa, clamou:
-
Marcela és a eleita e a força do Senhor está contigo. Tudo o que quiseres será
feito.
Depois,
a miragem diluiu-se em mil estrelas iridescentes que se esfumaram como por
encanto.
Acordou
pela manhã com a estranha sensação de que, a partir de agora, a sua vida
mudaria e que tudo iria ser diferente.
Espreitou
da sua janela os dramas da rua, mas o apaixonado não estava, a idosa tinha
desaparecido e, até o marido que desesperava, com a doença da mulher, estava
ausente.
Olhou
na procura de dramas para dar a sua ajuda mas, todos pareciam felizes com o sol
a brilhar, os rapazes corriam alegremente atrás de uma bola colorida, as
meninas saltavam à corda numa alegre algazarra e os velhotes na esplanada do
café olhavam de soslaio as mini-saias que passavam.
Marcela
estava triste porque tinha poderes mas não tinha onde os usar.
Entrou
em depressão, deixou de ouvir os pensamentos dos outros, tornou-se agressiva e
caiu, novamente, num sono profundo.
Abril
2021
Manuel
Penteado
1 comentário:
Sempre contos muito interessantes.
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