sexta-feira, 2 de abril de 2021

UM LIVRO DE CAPA AMARELA


 

Há uns tempos que sente um certo desconforto, não é

propriamente uma dor, mas um mau estar, um adormecimento que o deixa numa total apatia. Quer e tenta, mas parece que o corpo se nega como se tivesse ausente.

Um dia destes tem que ir ao médico embora, pense, que é apenas cansaço, tem trabalhado de mais.

Ainda se tivesse apetite, mas não consegue tolerar a comida, o estômago rejeita como se não tivesse espaço para o quase nada que ingere.

Este fim-de-semana, que há tanto tempo deseja, vai ficar na cama até que o corpo a rejeite, vai dormir como se o acordar não existisse.

Afinal foi como nos outros dias, acordou às mesmas horas e com as mesmas dores no corpo, ainda tentou voltar-se para o outro lado e fechar os olhos, mas de nada valeu, o mau estar ganhou.

Ia tomar banho, se calhar fazer a barba, bem precisava e, sair assim um pouco ao deus dará.

Primeiro um pequeno-almoço na pastelaria do Hermenegildo, tinha uns croissants recheados com chocolate a que não sabia e, não queria resistir, só tinha dúvidas se acompanhava com uma grande chávena de café ou, se calhar, um bom copo de sumo de laranja.

Bom, logo via!

A pastelaria, o que não era normal, estava quase vazia, apenas um casal idoso no canto mais afastado e na mesa, ao pé da montra, uma mulher, linda! Totalmente absorta nas paginas de um livro de capa amarela. Cabelos negros, graciosamente disposto em suaves caracóis caídos pelos ombros.

Puxou uma cadeira, propositadamente, com algum ruído e resultou. 

Tirou os olhos do livro e brindou-o com um sorriso que lhe paralisou o pensamento, lhe deixou uma tremedeira nas pernas, mas, felizmente, não lhe tolheu a voz:

- Bom dia menina, com esse sorriso vou, de certeza, ter um dia muito especial.

Agora ela não sorriu, deu uma cristalina gargalhada, e com o voz mais doce que alguma vez ouviu, respondeu:

- Graças a Deus, espero bem que sim!

Tinha sotaque num português, açucarado, do Brasil, olhos gaiatos numa cor indefinida, entre avelã e verde, pareciam mudar a cor consoante a expressão, mas era linda.

Tinha que insistir, não podia perder a oportunidade que o destino lhe estava a oferecer:

- Sabe, insistiu, para o dia ser perfeito só preciso que me deixe sentar, ai, ao pé de si a tomar o meu pequeno-almoço.

 -Oi, não seja por isso! Pode tomar o seu café da manhã à vontade, a mesa é grande!

Era linda e além disso, muito simpática.

Começou a ficar sem jeito, a forma simples e despretensiosa como encarou a sua ousadia, a maneira como arrumou o livro fez antever que ia ser companhia.

Sentou-se, olhou o livro da capa amarela, obra antiga de Pearl S. Buck, A

Promessa, não era muito normal nas mãos de uma menina que não devia ter mais de 25 ou 26 anos. Aproveitou o livro para alimentar a conversa:

- Esse romance é muito antigo, é curioso estar a ler essa obra.

Pareceu ficar com um leve rubor na face o que ainda acentuou mais o seu encanto, fez um leve trejeito com a boca antes de responder:

- Eu não sei mesmo quem é esta escritora, mas estava lá na estante do meu avô e a capa amarela me atraiu. Estou gostando mesmo, é uma história de um jovem chinês, mas passado há muito tempo, mas muito bem escrito.

Bebeu as palavras, deixou a música do sotaque invadi-lo numa doce dormência.

- Então está a deixar esfriar o café? Perguntou com um sorriso trocista. 

- Oh….gaguejou, os seus olhos fazem-me esquecer do resto!

Depois ficou arrependido, afinal mal a conhecia e estava a arriscar de mais.

Teve sorte, ela achou graça e sorriu:

- Obrigada, mas agora é hora de tomar o seu café.

********

Foi assim que começou, numa manhã que pouco ou nada prometia e, de repente, um livro de capa amarela transformou no principio de tudo, como se o passado fosse apenas uma leve recordação.

Saíram os dois, naturalmente, como dois amigos de há muito. 

Era portuguesa nascida, algures no Alentejo, foi para o Brasil tinha dois anos e por lá ficou 22, era, como dizia, meia-meia, coração dividido.

- É um pouco complicado, sabe?

- Não sei, disse ele, mas temos o dia para falar e contar tudo para eu perceber.

Foi linda a gargalhado que ela soltou, antes de dizer:

- Bom! O dia todo é demais, um tempinho podemos aproveitar, pois estou gostando da companhia.

****

Seguiram avenida abaixo, risadas, pequenos e casuais toques de mão. Uma cumplicidade que parecia grande, mas, era apenas feita de um disfarçar de emoções, de uma atracão que queriam disfarçar.

Ele estava a ordenar as ideias, um pouco sem jeito, as coisas estavam a ir tão depressa que se sentia desconfortável nas palavras.

- Então, continuou ela, me chamo Carolina, nasci numa pequena aldeia perto de Beja e, não sei porque, nunca me contaram, os meus pais se desentenderam e a minha mãe pegou em mim e abalou para junto de um irmão que trabalhava no Brasil, voltou a casar e foi assim que cresci, estudei e vivi sempre na Bahia.

- Há dois anos, o meu padrasto, teve um acidente e morreu, mamãe ficou muito abalada e resolvemos voltar para Portugal.

- Eu gosto de Lisboa, estou a preparar a tese do mestrado e sou advogada estagiária numa sociedade de advogados. 

- É tudo, sou assim, descontraída, gosto de conviver e tenho pena de não conhecer o meu pai, mas a mãe sempre escondeu.

Ele estava fascinado, a forma alegre como se expressava toda a doçura nas palavras e, sobretudo, a naturalidade como desnudava um pouco da vida perante um, quase, desconhecido.

Tinha que compartilhar, devia ser sincero como ela estava a ser.

- Eu sou um pouco desenraizado à procura de um rumo!

- Credo! Exclamou ela, que é isso de desenraizado?

- É uma forma de dizer, pois, sou alguém que com 23 anos ainda não se encontrou. Acabei, este ano, o meu curso de biologia e não tenho projetos nem ambições, sou saudável, mas sinto-me doente, apático, quase inútil.

- Quase como tu, não conheci o meu pai, foi embora tinha eu dois anos, diz minha mãe.

- Parece que nunca voltou e, confesso, ninguém sentiu a sua falta. 

A minha mãe, também advogada, foi capaz de ser uma maravilhosa mãe e, só em pequeno, senti a falta de um pai, depois habituei-me e não dei pela falta.

Temos muito em comum e se Deus quiser podes ser a minha musa inspiradora para a minha existência e, finalmente, ter um objetivo.

- Isso é uma declaração? Ainda nem sei o teu nome e já sinto uma espécie de galanteio!

Ele corou, mas gracejou:

- Foi de propósito, pensei que tinhas notado que tenho cara de Horácio!

- Horácio? Gosto mesmo tá?

- Ainda bem que gostas, porque foi mesmo uma declaração.

As horas passaram tão rápidas que quando deram por isso estavam na hora das despedidas.

- Amanhã então me telefona? Perguntou Carolina. O meu

nome, é mesmo, Carolina Beldroega, não é muito bonito mas é muito original.

Horácio pareceu surpreendido com o nome, fez uma cara estranha e não se conteve:

- Como é mesmo o teu nome? 

- É mesmo Beldroega tal como o meu pai, está na minha cédula, filha de Joaquim Ezequiel da Silva Beldroega e de Maria Constância Matos.

Horácio não parecia feliz, deu-lhe um leve beijo na face e foi saindo.

Saiu correndo a caminho do carro, as lágrimas queriam romper mas ia mordendo os lábios para não chorar, ele sabia que nunca iria telefonar.

No seu bilhete de identidade o nome do pai era, também, e exatamente, Joaquim Ezequiel da Silva Beldroega.

Não podia ser coincidência, não, não, não há coincidências assim!.

 

Abril 2021

Manuel Penteado 


 

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