Os homens voltavam do trabalho e os carros puxados pelas bestas cansadas,
faziam uma enorme chiadeira nos solavancos das pedras da calçada.
O dia ia, lentamente, desaparecendo no horizonte.
A noite adivinhava-se fria, pois o Sol não chegou para aquecer a
terra.
Os rapazes e as raparigas da aldeia andavam num frenesim, pois hoje era o
grande dia do baile da festa. Na Sociedade Recreativa a azáfama era enorme. O
conjunto musical, composto por quatro rapazes, afinavam os instrumentos num
desafinado conjunto de sons e sopros.
Não tardava os homens mais aperaltados, do que o habitual, iriam mirar as
raparigas que, a pouco e pouco, ocupavam as cadeiras distribuídas ao redor do
salão. As mães, nas filas mais recuadas, estavam atentas não fosse algum rapaz
mais atrevido abusar do tesouro que com tanto cuidado guardavam.
Olhei em redor e desde logo fiquei preso numa deusa que sobressaía entre as
demais. Estava na primeira fila. Toda vestida de branco, dum branco tão alvo
que se confundia com a leitosa cor da tês. Naquele conjunto só o negro dos
cabelos que em suaves caracóis lhe emolduravam a doçura do rosto angelical,
punham alguma nota de cor. Quando o conjunto, num som dissonante, começou, pedi
de imediato, àquela visão, para dançar.
Enlaçou-se nos meus braços com uma leveza que mais parecia uma pena a
deslizar ao sabor de uma brisa. Tinhas uns olhos negros, profundos, como dois
lagos que me contemplavam com tanta doçura que as minhas mãos tremiam nas
costas de tão suave criatura. Não era da aldeia, segundo me disse, era da vila
e viera de propósito ao baile.
Mas, perguntei eu:
·
Quer dizer que depois vais embora e não te voltarei a ver?
·
Nem pensar, estarei sempre na terra à tua espera. José Romão é o meu pai e
todos o conhecem. Não tarda terei que abalar, à meia-noite alguém me vem
buscar. Encostou-me o rosto que estava gelado. A noite, de facto, prometia ser
muito fria. Tirei o meu cachecol vermelho e cobri-lhe os ombros.
·
Amanhã já tenho um pretexto para a ir visitar, vou buscar o meu agasalho.
Sorriu de uma forma tão doce e desapareceu muito rápida no escuro da rua. Foi
uma noite de insónias. A moça não me saia da cabeça e nem sequer lhe tinha
perguntado o nome. Mas decerto não seria difícil. Mal acabei o pequeno-almoço
tomei o rumo da vila, ansioso para contemplar aquele sorriso que me deixava tão
transtornado. Era uma jornada rápida, mas o tempo parecia não ter pressa de
passar. Cheguei à povoação. Um homem, à porta dum café, olhava-me curioso.
·
Boa tarde, onde mora o senhor José Romão?
·
Amigo, vem tarde, o Zé Romão morreu, ou fez ou vai fazer um mês. Com ele já
não pode falar. Mas....eu... propriamente, gaguejei, não queria falar com ele,
mas com a filha, não me lembro do nome.
·
Dá no mesmo. O Zé, a Celestinha e a mãe morreram no mesmo desastre. Foi
além na curva que vai para a ponte do ribeiro. Como lhe disse deve ter sido há
um mês. Foi uma desgraça muito grande.
·
Não pode ser! Estive ontem a dançar com a Celeste!
·
Alguém mangou consigo, amigo. Mas vá além ao cemitério e vai ver três campas
novas ao fundo da vereda, tem lá as fotografias. Agradeci, ganhei coragem
e fui, e lá estavam as três campas. Não precisei de ver mais nada. O meu
cachecol vermelho estava estendido em cima da pedra, junto a uma foto esmaltada
da Celeste.
Não olhei para trás, entrei no carro e desapareci na curva da
estrada.
Nunca mais danço com estranhas!
Manuel Penteado
Maio 2021
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