sábado, 19 de junho de 2021

A PARTILHA



Talvez fossem remorsos! Não que tivesse motivo para isso, mas há momentos que nos perturbam o pensamento e as coisas podem acontecer.

Marcolino era, um pouco, explosivo e facilmente se deixava levar pelas emoções, nada de violências ou de ofensas mas amuava e desconhecia as pessoas, não era propriamente um desconhecer absoluto, era mais um distanciamento, um faz de conta, uma maneira de mostrar uma insatisfação.

Mas, pobre de espirito e um pouco retrogrado, normalmente saía a perder, coisa que não sabia, ainda, controlar.

Agora a questão era um pouco mais delicada, havia interesses que ultrapassavam a sua própria vontade e, o seu raciocínio, não o ajudava a discernir o que era melhor para ele próprio.

As coisas, por vezes, acontecem e ultrapassam a nossa vontade, não conseguimos controlar e depois o arrependimento não vale nada.

Ele, Marcolino, viu a Cassilda, no baile da feira, no primeiro dia de festa na aldeia e, obedeceu às ordens, na forma da sua rudeza natural e, mesmo na frente de toda a gente, disparou:

- Ouve lá cachopa! Há muito tempo que ando de olho em ti, já me informei que não tens ninguém, por isso, podíamos namorar os dois!

Cassilda ficou para morrer, tal foi a vergonha porque passou. Quem lhe havia de dizer que Marcolino, que diziam ser meio tonto, a iria assediar dessa forma, neste sitio e, pior ainda, à frente de tanta gente que a conhecia.

Não queria ser bruta, nem sequer ofender o rapaz, mas não sabia bem como sair desta situação.

Corou, sentia mesmo um calor enorme na cara, e o olhar fixo e embasbacado de Marcolino, só servia para piorar a situação.

Tentou falar mas, as palavras, enrolavam na garganta e não havia maneira de se transformarem em qualquer som e tinha medo, mesmo muito, pela reacção daquele homem de olhos desvairados.

****

O professor Eleutério reparou, no embaraço da moça e, no olhar guloso do Marcolino, pegou-lhe com suavidade, num braço, e com muita argúcia, foi-lhe segredando:

- Sabes, Marcolino, que nunca se deve abordar uma rapariga assim?

- Desculpe professor, interrompeu o rapaz, eu não bordei nada só a pedi em namoro.

O professor teve que suster o riso, com muita calma insistiu:

- Eu disse abordar que é o mesmo que, para perceberes, chegares ao pé. Não deves dizer, assim de repente, tens que ser esperto, carinhoso e com muito tacto.

- Mas senhor professor, insistiu o moço, a culpa foi do meu mano, ele é que anda, há muito, com a Cassilda na imaginação, eu também acho que é jeitosa, mas ele está mesmo entusiasmado. Vai daí, ontem, disse-me que eu tinha que a pedir em namoro, mas não podia dizer que era para os dois. 

- Agora sou eu que não percebo! Explica lá isso devagarinho, como é isso de para os dois? 

- Pois, professor, é isso que nós queremos, uma mulher para os dois! A gente dá-se bem, não somos ricos, por isso uma para os dois chega bem. Eu trato do gado, ele trata da lavoura, porque tem mais força, e ela vai tratar da casa.

Vai ser uma princesa, mas mesmo uma princesa como a dos filmes.

O Inácio chega a casa às 7 horas e tem a mulher à espera, linda, para ele. Eu tenho que recolher as ovelhas chego mais tarde, ai pelas 8 horas e é outra festa, lá estará ela, linda para mim.

Tem dois maridos, para esperar, e tem dois amores a chegar. Então não é bonito?

- E depois? Perguntou o professor?

- Então depois o que? Respondeu Marcolino.

- Sim e depois? Vocês querem uma criada ou uma esposa?

- Pode chamar isso, queremos uma mulher que, também, é essa coisa de esposa.

- É à noite como dividem? Perguntou o professor.

- Dividir? Isso não, não dividimos nada, nunca, mas mesmo nunca. Quase gritou Marcolino.

- Sabes que mais! Exclamou o professor, isto parece uma conversa de malucos!

- Olhe lá senhor professor, eu tenho muito respeito por si, mas não sou nenhum maluco, há muitas pessoas que pensam que sou, mas não sou. Sou um pouco fraco de juízo e as pessoas pensam que sou maluco e o meu mano ainda pior, nem se atreve a passar pela aldeia.

Se se atreve há logo um ou outro que grito "Olha o Inácio desmiolado" e ele não gosta, atira pedras aos rapazes. Eu também não gosto e, um dia apanho um desses malvados, dou cabo dele, estrafego-o de tal maneira que vai passar o resto da vida agarrado a um cajado. Pode ter a certeza que o faço!

 - Mas ouve bem Marcolino, eu não chamei maluco a ninguém, só disse que parecia uma conversa de malucos, mas éramos os dois, cada um dizendo uma baboseira, sem chegarmos a lado nenhum, porque não nos explicamos bem.

Eu sei que és bom rapaz, mas perdes a cabeça com facilidade e o teu irmão, bem nem vale a pena falar.

Mas vamos à nossa conversa sobre a Cassilda, se bem percebi vocês querem casar os dois com a menina, coisa que não é permitida e, mesmo que fosse, era preciso que ela quisesse.

 - Mas não precisamos de casar, ela vai lá pra casa, passa a ser a dona e senhora das coisas, nós os homens vamos trabalhar, quando voltamos ela está à nossa espera com a janta.

 Chega um de cada vez, ela dá um beijinho e agradece a Deus por ter dois maridos tão bons.

 O professor estava pasmado, não sabia se devia rir ou chorar, nunca na vida pensou ser apanhado numa coisa destas. Estava arrependido por se ter metido neste imbróglio, mas o olhar aterrorizado da rapariga, e o desvario do homem, obrigaram a tomar uma posição e agora estava num beco sem saída.

 Tomou fôlego, e avançou:

 - Ouve lá, parece que já têm tudo resolvido mas há uma coisa que me escapa:

 - E qual dos dois vai ser o homem da casa?

 - Que pergunta, senhor professor, parece que não percebeu nadinha de nada. Tá bom de ver que vamos ser os dois, os homens da casa, não podia ser doutra maneira!

 - Pois, está bom de ver! Já calculava, disse o professor, mas qual dos dois dorme com a dona da casa?

 - Ai alto, senhor professor! Misturas não. Ela vai ter um quarto, com uma cama, só para ela.

 Eu e o meu mano continuamos a dormir juntos, como sempre, já estamos habituados ao cheiro um do outro. Náá... não há cá mudanças, nem misturas. Era o que faltava!

 - Afinal os miúdos parece que têm razão!

E digo quase, porque na verdade eles deviam gritar.

São os dois varridos do miolo!!!!

Vá desaparece e, se te vejo a incomodar alguma rapariga, vais direitinho à guarda e sou eu que te levo pelas orelhas. Eles logo te arranjam outra companhia para dormires.

- Eu cá não tenho culpa! ! Foi o meu mano que me mandou.

Disse, Marcolino, a chorar.

 

Junho 2021

Manuel Penteado

 

Sem comentários: