Só falta a minha Mila
Sabia que era hoje, há muito tempo que tinha essa certeza, mas tinha
uma vontade enorme de adiar. Não era propriamente medo, há muito que o bani da
minha mente, mas a incerteza do que está para além daquilo que eu entendo.
Compreendo a vida, faço parte dela, sei que a morte, faz parte da própria
vida, ou será, como já ouvi, que a vida é uma pequena pausa da morte?
São conjeturas, divagações pela incerteza, receios pelo desconhecimento
ou, talvez, uma vontade enorme por estar deste lado, não sendo tão bom, mas já
o conhecemos.
***
Foi numa tarde, de Setembro, que o doutor Osório, olhando-me por cima dos
óculos, me foi preparando:
- Caro Aniceto, as noticias não são as que gostaria de lhe dar, pelos
sintomas eu já suspeitava, mas queria estar enganado, por isso estes exames
todos!
Não me contive com aquela ladainha e, sou perito nisso, interrompi:
- Passe à frente doutor e vá ao que interessa.
O médico pareceu compreender os meus modos bruscos, tirou os óculos,
ridículos, e foi duro e seco:
- Vamos ao que interessa, tem um tumor maligno.
Afinal, pensava, mas não estava preparado, senti como um enorme soco no
estômago, até pareceu que o cérebro chocalhou. Recobrei, uma calma aparente, e
apenas me saiu:
- E agora doutor?
O médico, conhecido de há muito tempo, parecia ter a resposta já preparada:
- É assim! Se não fizer nada, dou-lhe seis meses de vida, se formos para a
operação tem 60% de hipóteses, se Deus o ajudar, pode ficar com alguns
problemas, mas com sorte fica bom.
Levei algum tempo a remoer, passei algumas ideias em branco e pensamentos
negros.
Escondi de todos, até da família.
Ontem sonhei que tinha sido operado, foi estranho!
Eu ajudei a mexer naquela confusão de órgãos, de sangue muito vermelho, de
ganchos a segurar a abertura, de homens e mulheres de mascaras numa azáfama de
bisturis, tesouras curvas e uns alicates que seguravam, enquanto iam cortando
pedaços.
Acordei esbaforido, aos gritos. Foi a Mila que me sossegou.
Foi nessa manhã que ganhei coragem e contei tudo. Primeiro choramos, os
dois, num abraço deixando que as nossas lágrimas se encontrassem num
mesmo lamento.
Mila foi a primeira a enxugar os olhos, a recuperar das emoções.
Segurou-me as mãos e, com a maior ternura, foi dizendo:
- Sabes amor, tu és um homem bom, forte e a razão da minha felicidade. Deus
não pode ficar indiferente, vai ouvir as nossas preces, vai ser justo. Não
tenhas medo, vai correr bem e, eu, estarei sempre a teu lado.
******
Vim ontem para o hospital, disseram que me iam preparar para, amanhã à
tarde, ser operado.
Tiraram sangue para análises, espetaram-me uma agulha na veia, com um
tubinho ligado a um saco de soro, que ia pingando numa cadência programada.
A enfermeira tinha um sorriso lindo, ajeitou-me a roupa, enquanto ia
dizendo:
- Agora durma, descanse!
Vieram, com uma espécie de cama com rodas, e meteram-me num elevador, maior que
a minha cozinha, e levaram-me para uma sala enorme, com uma imensa luz,
transbordaram-me para uma mesa.
O cirurgião, julgo que Dr. Norton, sossegou-me com palavras positivas.
- A Dra. Cidália vai dar-lhe a anestesia, quando acordar é um homem novo!
*****
Acho que já acordei mas não sei quem sou nem onde estou.
O sítio é lindo, a luz brilha, a música é suave.
Devo estar, ainda, no efeito da anestesia.
Bom! Já devo estar acordado, tenho aqui todos os meus amigos, meus pais e
até os meus avós, afinal estavam vivos, confusão a minha.
Só falta a Mila o que é estranho!
Porque será que a minha mulher não está?
Manuel Penteado
Junho 2021
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