terça-feira, 15 de junho de 2021

MILA


 

Só falta a minha Mila

Sabia que era hoje, há muito tempo que tinha essa certeza, mas  tinha uma vontade enorme de adiar. Não era propriamente medo, há muito que o bani da minha mente, mas a incerteza do que está para além daquilo que eu entendo.

Compreendo a vida, faço parte dela, sei que a morte, faz parte da própria vida, ou será, como já ouvi, que a vida é uma pequena pausa da morte?

São conjeturas, divagações pela incerteza, receios pelo desconhecimento ou, talvez, uma vontade enorme por estar deste lado, não sendo tão bom, mas já o conhecemos.
***
Foi numa tarde, de Setembro, que o doutor Osório, olhando-me por cima dos óculos, me foi preparando:

- Caro Aniceto, as noticias não são as que gostaria de lhe dar, pelos sintomas eu já suspeitava, mas queria estar enganado, por isso estes exames todos!

Não me contive com aquela ladainha e, sou perito nisso, interrompi:

- Passe à frente doutor e vá ao que interessa.

O médico pareceu compreender os meus modos bruscos, tirou os óculos, ridículos, e foi duro e seco:

- Vamos ao que interessa, tem um tumor maligno.

Afinal, pensava, mas não estava preparado, senti como um enorme soco no estômago, até pareceu que o cérebro chocalhou. Recobrei, uma calma aparente, e apenas me saiu:

- E agora doutor?

O médico, conhecido de há muito tempo, parecia ter a resposta já preparada:

- É assim! Se não fizer nada, dou-lhe seis meses de vida, se formos para a operação tem 60% de hipóteses, se Deus o ajudar, pode ficar com alguns problemas, mas com sorte fica bom.
Levei algum tempo a remoer, passei algumas ideias em branco e  pensamentos negros.

Escondi de todos, até da família. 

Ontem sonhei que tinha sido operado, foi estranho!

Eu ajudei a mexer naquela confusão de órgãos, de sangue muito vermelho, de ganchos a segurar a abertura, de homens e mulheres de mascaras numa azáfama de bisturis, tesouras curvas e uns alicates que seguravam, enquanto iam cortando pedaços.

Acordei esbaforido, aos gritos. Foi a Mila que me sossegou.

Foi nessa manhã que ganhei coragem e contei tudo. Primeiro choramos, os dois, num abraço deixando que as nossas lágrimas se encontrassem num mesmo lamento.

Mila foi a primeira a enxugar os olhos, a recuperar das emoções.
Segurou-me as mãos e, com a maior ternura, foi dizendo:

- Sabes amor, tu és um homem bom, forte e a razão da minha felicidade. Deus não pode ficar indiferente, vai ouvir as nossas preces, vai ser justo. Não tenhas medo, vai correr bem e, eu, estarei sempre a teu lado.

******

Vim ontem para o hospital, disseram que me iam preparar para, amanhã à tarde, ser operado.

Tiraram sangue para análises, espetaram-me uma agulha na veia, com um tubinho ligado a um saco de soro, que ia pingando numa cadência programada.

A enfermeira tinha um sorriso lindo, ajeitou-me a roupa, enquanto ia dizendo:

- Agora durma, descanse!
Vieram, com uma espécie de cama com rodas, e meteram-me num elevador, maior que a minha cozinha, e levaram-me para uma sala enorme, com uma imensa luz, transbordaram-me para uma mesa.

O cirurgião, julgo que Dr. Norton, sossegou-me com palavras positivas.

- A Dra. Cidália vai dar-lhe a anestesia, quando acordar é um homem novo!
*****
Acho que já acordei mas não sei quem sou nem onde estou.

O sítio é lindo, a luz brilha, a música é suave.

Devo estar, ainda, no efeito da anestesia.

Bom! Já devo estar acordado, tenho aqui todos os meus amigos, meus pais e até os meus avós, afinal estavam vivos, confusão a minha.

Só falta a Mila o que é estranho!

Porque será que a minha mulher não está?

 

Manuel Penteado

Junho 2021



 

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