Até que a rapariga não cantava mal.
Era uma daquelas músicas brasileiras a que a voz doce da cantora emprestava uma sensação de cócegas.
As pessoas mais preocupadas com o conteúdo dos pratos, pouca ou nenhuma atenção lhe votavam.
Ela persistia na balada, onde o amor ainda havia de voltar.
Um pouco tímido cruzou os olhos com os da artista e mais timidamente ainda os deixou cair.
A voz dela parecia mais doce e a letra da canção era como se fosse só para ele.
Falava de tristezas passadas e de muitas promessas de um amor que iria acontecer.
Havia lamentos e todas as venturas de um dia que estava tão próximo.
Falava de beijos quentes, de promessas que pareciam reais.
Ficou enlevado e procurou-lhe os olhos que num largo sorriso o deixou confuso.
Desviou o olhar e o rubor tomou conta do seu rosto, como de um rapazinho envergonhado.
No seu cérebro mil projetos se começaram a desenhar.
A que horas sairia? Iria só, ou alguém a iria esperar?
E o sorriso? Meu Deus, aquele sorriso!
Ficou desajeitado como sempre, sem saber tomar uma decisão.
Pediu mais uma bebida, era a terceira e decerto não lhe iria cair muito bem.
Não estava habituado mas a ocasião a isso o obrigava.
Em pequenos goles ia ficando inebriado com a letra que decerto lhe era dedicada.
Os acordes entravam nos ouvidos e as palavras daquele amor esquecido aqueciam uma existência tão vazia.
Será hoje meu Deus, será hoje
Que o amor vai surgir, assim, de repente
Trazendo tudo o que quero
Aquecendo de forma tão boa a alma da gente
Estava enlevado na letra, inebriado na música.
Quando sua boca me chama
Eu corro apressada
Rebolo consigo na cama
Não preciso mais nada
O pensamento levantou voo, os olhos fecharam-se num doce torpor.
Andou nas nuvens de mãos dadas, vogou ao sabor do vento, rodopiou agarrado aquela delicada cintura.
Beijou aqueles cabelos negros que lhe roçavam o rosto e que o deixavam louco.
Estava próximo daqueles lábios carnudos que em promessas se abriam para ele.
Já sentia o sabor de um beijo quente que se aproximava.
O corpo tremia de prazer.
O sobressalto foi enorme.
Aquela cara feia tão próxima da sua não era a da cantora, acordou sobressaltado com alguém que lhe berrava aos ouvidos:
- Então amigo, acorde que vamos fechar. O espetáculo acabou há muito!
Só frio da rua o trouxe à realidade.
Manuel Penteado
Dezembro 2021
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