sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

AQUELA CANÇÃO

 


Até que a rapariga não cantava mal. 

Era uma daquelas músicas brasileiras a que a voz doce da cantora emprestava uma sensação de cócegas. 

As pessoas mais preocupadas com o conteúdo dos pratos, pouca ou nenhuma atenção lhe votavam.

Ela persistia na balada, onde o amor ainda havia de voltar.


Um pouco tímido cruzou os olhos com os da artista e mais timidamente ainda os deixou cair. 


A voz dela parecia mais doce e a letra da canção era como se fosse só para ele. 

Falava de tristezas passadas e de muitas promessas de um amor que iria acontecer. 

Havia lamentos e todas as venturas de um dia que estava tão próximo.

Falava de beijos quentes, de promessas que pareciam reais.

Ficou enlevado e procurou-lhe os olhos que num largo sorriso o deixou confuso.

Desviou o olhar e o rubor tomou conta do seu rosto, como de um rapazinho envergonhado. 


No seu cérebro mil projetos se começaram a desenhar. 

A que horas sairia? Iria só, ou alguém a iria esperar?

E o sorriso? Meu Deus, aquele sorriso! 


Ficou desajeitado como sempre, sem saber tomar uma decisão. 


Pediu mais uma bebida, era a terceira e decerto não lhe iria cair muito bem. 

Não estava habituado mas a ocasião a isso o obrigava. 

Em pequenos goles ia ficando inebriado com a letra que decerto lhe era dedicada. 


Os acordes entravam nos ouvidos e as palavras daquele amor esquecido aqueciam uma existência tão vazia.  


 Será hoje meu Deus, será hoje

 Que o amor vai surgir, assim, de repente 

Trazendo tudo o que quero 

Aquecendo de forma tão boa a alma da gente 


Estava enlevado na letra, inebriado na música. 


Quando sua boca me chama 

Eu corro apressada 

Rebolo consigo na cama 

Não preciso mais nada 


O pensamento levantou voo, os olhos fecharam-se num doce torpor. 

Andou nas nuvens de mãos dadas, vogou ao sabor do vento, rodopiou agarrado aquela delicada cintura. 

Beijou aqueles cabelos negros que lhe roçavam o rosto e que o deixavam louco. 

Estava próximo daqueles lábios carnudos que em promessas se abriam para ele. 

Já sentia o sabor de um beijo quente que se aproximava. 

O corpo tremia de prazer.



O sobressalto foi enorme.

Aquela cara feia tão próxima da sua não era a da cantora, acordou sobressaltado com alguém que lhe berrava aos ouvidos: 


    - Então amigo, acorde que vamos fechar. O espetáculo acabou há muito!

       Só frio da rua o trouxe à realidade.

 


Manuel Penteado 

Dezembro 2021

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