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Vestido numa espécie de opa de lã castanha, já muito
desbotada, estendia a mão roxa, pelo frio, acompanhada de um sorriso tão doce,
que era difícil não sentir algo a aquecer o nosso coração.
Aos seus pés, aquecendo-os, um pequeno cachorro branco
tornava, quase, irreal a ternura daquele quadro.
As
pessoas passavam carregando os embrulhos das últimas prendas, algumas
indiferentes, outras curiosas deixavam um sorriso e poucas, muito poucas,
atiravam de forma quase displicente uma moeda.
O
menino apenas sorria, na luminosidade do azul celeste dos olhos que, sem
ninguém notar, tornavam mais radiosa a fria tarde dum dia 24 de Dezembro.
***
Carlota e Luís, tão velhos como o ano que estava a acabar, de braço-dado num misto de amparo e proteção, iam olhando os enfeites de Natal, as luzes brilhando, as montras cheias de coisas a que nem em imaginação podiam chegar.
Carlota
era roliça, olhos brilhantes e ladinos, um pouco mouca, o que a levava a falar
mais alto com receio, que os outros tivessem a mesmo dificuldade em ouvir.
Gritou para o marido:
-Querido,
que boa ideia este passeio, tenho gostado muito desta animação! Temos que fazer
isto mais vezes!
Luís,
era seco de carnes, cara enrugada pelas marcas do tempo e pelo salitre que se
lhe impregnou a pele. Foi pescador muitos anos e, ainda hoje, sente a magia do
mar, mas os 85 anos apenas lhe deixam a possibilidade de sonhar.
Olhou
a mulher com a mesma ternura, com que o faz há 63 anos, antes de responder:
-Sabes
rapariga, que gostava de comprar uma coisa para te por no sapatinho, mas há
tantas que acabo por não comprar nada. Sorriu num sorriso tão triste, mas a
mulher cortou com um aperto carinhoso no braço.
-Mas
Luís já tenho a melhor prenda no sapatinho, meu tonto, tu és o melhor presente
que Deus alguma vez me deixou. Não temos dinheiro para prendas, mal chega para
o comer e para os remédios, não preciso de mais nada. Tenho-te a ti e tu
tens-me a mim.
Só
tenho medo do dia em que um de nós abalar, o que irá ser do outro!
Nos
olhos do Luiz, uma humidade toldou-lhe a fraca visão, sentiu um nó na garganta,
mas foi disfarçando:
-
Sabes Carlota? Todos a noites, antes de adormecer, peço a Deus que quando chegar
a nossa vez, seja na mesma hora para os dois. Não te quero deixar só e não
sabia ficar sem ti.
A
mulher disfarçou um sorriso nos olhos.
-
Deixa lá essas coisas agora, é Natal e vamos jantar com os nossos amigos, no
refeitório da Igreja, está quente e a comidinha é boa, temos que estar às oito
horas. E vais, vamos, receber uma prenda. O ano passado deram-te essas luvas e
a mim, o xaile que ponho pelos ombros ao serão.
-
Lembras-te?
O
homem deixou uma lágrima escorrer no emaranhado das rugas, que lhe vincavam o
rosto e disfarçou com um sorriso:
-
Mas é Natal, estamos juntos, temos amigos à nossa espera, não vamos pensar em
coisas tristes.
Carlota
segurou o braço do marido, quase de repelão, e embevecida, exclamou:
-
Luiz, olha aquele menino no adro da Igreja. Tão bonito que parece, mesmo, um
menino Jesus com uma ovelhinha deitada aos pés. Deve estar geladinho, temos que
lhe deixar uma moeda!
Luís
deitou a mão ao bolso, tirou um velho porta-moedas e mostrou à mulher:
- Olha! Só temos 50 cêntimos! Mas a criança deve precisar ainda mais do que nós. Vá, deixa a moeda na mão da criança.
Carlota
fez o gesto mas, como por encanto, uma luz mais brilhante que mil-sois iluminou
o casal, cítaras e harpas, encheram o espaço com a mais bela melodia.
O
menino levantou-se, rodeado de uma auréola dourada, pegou nas mãos de Carlota e
Luís e, docemente, subiram acompanhados por um coro de anjos.
As
pessoas continuavam na sua azáfama sem se aperceberem que ali, naquele momento,
Carlota e Luís, estavam a subir para continuarem, como desejavam, juntos para
toda a eternidade.
Manuel Penteado
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