quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

UM CONTO DE NATAL




 

 

Estava sentado na pedra fria do degrau da Igreja. Olhos de um azul luminoso e o cabelo louro, em caracóis, orlavam-lhe a testa de forma natural. 

Vestido numa espécie de opa de lã castanha, já muito desbotada, estendia a mão roxa, pelo frio, acompanhada de um sorriso tão doce, que era difícil não sentir algo a aquecer o nosso coração.

Aos seus pés, aquecendo-os, um pequeno cachorro branco tornava, quase, irreal a ternura daquele quadro.

As pessoas passavam carregando os embrulhos das últimas prendas, algumas indiferentes, outras curiosas deixavam um sorriso e poucas, muito poucas, atiravam de forma quase displicente uma moeda.

O menino apenas sorria, na luminosidade do azul celeste dos olhos que, sem ninguém notar, tornavam mais radiosa a fria tarde dum dia 24 de Dezembro.

 ***

Carlota e Luís, tão velhos como o ano que estava a acabar, de braço-dado num misto de amparo e proteção, iam olhando os enfeites de Natal, as luzes brilhando, as montras cheias de coisas a que nem em imaginação podiam chegar.

Carlota era roliça, olhos brilhantes e ladinos, um pouco mouca, o que a levava a falar mais alto com receio, que os outros tivessem a mesmo dificuldade em ouvir. Gritou para o marido:

-Querido, que boa ideia este passeio, tenho gostado muito desta animação! Temos que fazer isto mais vezes!

Luís, era seco de carnes, cara enrugada pelas marcas do tempo e pelo salitre que se lhe impregnou a pele. Foi pescador muitos anos e, ainda hoje, sente a magia do mar, mas os 85 anos apenas lhe deixam a possibilidade de sonhar.

Olhou a mulher com a mesma ternura, com que o faz há 63 anos, antes de responder:

-Sabes rapariga, que gostava de comprar uma coisa para te por no sapatinho, mas há tantas que acabo por não comprar nada. Sorriu num sorriso tão triste, mas a mulher cortou com um aperto carinhoso no braço.

-Mas Luís já tenho a melhor prenda no sapatinho, meu tonto, tu és o melhor presente que Deus alguma vez me deixou. Não temos dinheiro para prendas, mal chega para o comer e para os remédios, não preciso de mais nada. Tenho-te a ti e tu tens-me a mim.

Só tenho medo do dia em que um de nós abalar, o que irá ser do outro!

Nos olhos do Luiz, uma humidade toldou-lhe a fraca visão, sentiu um nó na garganta, mas foi disfarçando:

- Sabes Carlota? Todos a noites, antes de adormecer, peço a Deus que quando chegar a nossa vez, seja na mesma hora para os dois. Não te quero deixar só e não sabia ficar sem ti.

A mulher disfarçou um sorriso nos olhos.

- Deixa lá essas coisas agora, é Natal e vamos jantar com os nossos amigos, no refeitório da Igreja, está quente e a comidinha é boa, temos que estar às oito horas. E vais, vamos, receber uma prenda. O ano passado deram-te essas luvas e a mim, o xaile que ponho pelos ombros ao serão.

- Lembras-te?

O homem deixou uma lágrima escorrer no emaranhado das rugas, que lhe vincavam o rosto e disfarçou com um sorriso:

- Mas é Natal, estamos juntos, temos amigos à nossa espera, não vamos pensar em coisas tristes.

Carlota segurou o braço do marido, quase de repelão, e embevecida, exclamou:

- Luiz, olha aquele menino no adro da Igreja. Tão bonito que parece, mesmo, um menino Jesus com uma ovelhinha deitada aos pés. Deve estar geladinho, temos que lhe deixar uma moeda!

Luís deitou a mão ao bolso, tirou um velho porta-moedas e mostrou à mulher:

- Olha! Só temos 50 cêntimos! Mas a criança deve precisar ainda mais do que nós. Vá, deixa a moeda na mão da criança.

Carlota fez o gesto mas, como por encanto, uma luz mais brilhante que mil-sois iluminou o casal, cítaras e harpas, encheram o espaço com a mais bela melodia. 

O menino levantou-se, rodeado de uma auréola dourada, pegou nas mãos de Carlota e Luís e, docemente, subiram acompanhados por um coro de anjos.

As pessoas continuavam na sua azáfama sem se aperceberem que ali, naquele momento, Carlota e Luís, estavam a subir para continuarem, como desejavam, juntos para toda a eternidade.

 Manuel Penteado

Dezembro 2021

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