Foi um raio de Sol que rompeu pela minha janela e que brincando com os meus olhos me trouxe para a realidade do dia.
Esfreguei os olhos tentando, por mais uns minutos, gozar da doçura da cama.
Levantei-me com algum esforço, os ossos já não são como antigamente e todas as articulações se vão queixando à medida que se têm que mover.
O dia estava lindo, e o chilreado dos pássaro era o pronuncio de um dia de calor.
Olhei pela janela e a azáfama diária já se ia instalando nas ruas. O homem do quiosque pendurava os jornais diários na expectativa que os títulos mais gritantes trouxessem os possíveis clientes.
Dona Rosalina saiu esbaforida do prédio e gritava de uma forma tão histérica que as pessoas tinham dificuldade em perceber o que ela dizia.
Estava totalmente transtornada, com um espanador na mão e os olhos esbugalhados ia apregoando:
- Está morto, mataram o Senhor Isidro! Chamem a polícia!
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Dona Rosalina fazia a limpeza no escritório que ficava no rés-do-chão do prédio em frente ao meu.
Como em todos os outros dias, chegou cedo para poder estar despachada antes da entrada do pessoal mas, hoje, estranhou a luz acesa no gabinete do patrão, o Senhor Isidro.
Parecia estar a dormir, cabeça na secretária, olhos abertos mirando o vago.
- Que susto que o senhor me pregou! Exclamou Dona Rosalina.
Aproximou-se a medo e só então reparou que a poça de sangue que se espalhava no soalho escorria da cabeça do pobre homem.
Correu para a rua em gritos doidos e desesperados.
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A polícia estava totalmente confundida com as características deste crime.
Pelas análises periciais chegaram conclusão que a morte se terá verificado entre as 9 horas e as 23 horas da noite anterior e tinha sido agredido na zona anterior do crânio com um objeto contundente.
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O Senhor Isidro era o dono de uma empresa de artes gráficas, tinha a oficina nos arredores da cidade e o escritório neste prédio onde sucedeu o nefasto acontecimento, onde além do próprio, trabalhavam também o Senhor Onofre como responsável pela contabilidade, a menina Gracinda que se encarregava do secretariado e o senhor Pires encarregado do sector comercial.
Todos foram interrogados e conferidos os seus álibis. Não encontraram nada que os pudesse colocar no local do crime.
A menina Gracinda saiu, como todos os dias, por volta da 18,30 h e foi diretamente para casa onde ficou juntamente com o marido e a filha.
Os outros saíram, os dois, cerca das 19 horas, beberam uma cerveja no café ao lado do escritório e seguiram para as residências.
O senhor Onofre vivia com uma filha e o genro, que puderam confirmar que chegou por volta das oito e meia e só voltou a sair de manhã para ir trabalhar.
O senhor Pires, que ainda vive com os pais, chegou por volta das oito horas, jantou e adormeceu frente ao televisor até a mãe o acordar para ir para a cama.
Os três garantiram que o patrão ficou no seu gabinete, que disseram até à manhã mas, como de costume, ele não respondeu.
O senhor Isidro tinha um feitio muito irascível, implicativo e sempre pronto a encontrar defeitos em tudo que os outros faziam. Para ele, só os clientes contavam, tudo o mais, era secundário.
Era, como dizia o senhor Pires, um indivíduo em que era difícil contar os inimigos e muito, mas mesmo muito fácil contar os amigos.
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Passaram oito meses sem nunca terem descoberto quem possa ter dado cabo do canastro ao pobre senhor e, segundo parece, ninguém se mostrou muito preocupado com isso.
A Empresa voltou à rotina normal, o cargo da gerência foi ocupado por um irmão do morto, que fez com que a harmonia voltasse aquele escritório.
A polícia arquivou, parece que por inconclusivo, o processo.
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Hoje levantei-me mais cedo do que habitual e, por puro acaso, encontrei a Dona Rosalina que me sorriu:
- Olá senhor Doutor há muito que não o via, onde tem andado?
- Oh Dona Rosalina, o trabalho sabe como é! E a senhora que tem feito? Já não a via desde o dia em que o encontrou, sabe, no dia em que descobriu aquilo.
Com sorriso respondeu:
- Ah quando encontrei o gajo morto? Já foi para ai há nove meses.
Estranhei a calma da resposta mas:
- Pois foi! E nunca descobriram nada? Pobre homem!
Fez uma cara de desagrado e quase gritou:
- Pobre homem? Teve o que merecia, para não se meter com quem não devia. Sabe que ando doida por desabafar mas tenho medo.
- Mas fale comigo, sou um túmulo.
- Tenho receio, não vá o senhor doutor lixar-me.
- Mulher fale à vontade que eu juro, haja o que houver, diga o que disser que nunca a minha boca se irá abrir.
- Então antes que rebente aqui vai, fui eu que estoirou os cornos daquele gajo!
Nesse dia fui à noite fazer a limpeza e o tipo ainda lá estava.
Começou com graças pensando que eu era uma qualquer. Mandei vir com ele e pareceu que se acalmou até que entrei no seu gabinete para aspirar. Vai dai o sacana apalpou-me o rabo com a maior desfaçatez. Fiquei furiosa e dei-lhe com o tubo do aspirador nos cornos. Não se mexeu mais.
Juro senhor doutor que não queria fazer aquilo, só me defendi mas se calhar foi com força demais. Pirei-me logo para casa e voltei no outro dia de manhã como se não fosse nada comigo.
Fiz toda aquela fita e nunca ninguém me perguntou nada.
É para ver a polícia que temos!
Fiquei siderado, fui-me raspando enquanto lhe ia respondendo:
- Nunca me contou nada, juro que jamais falei consigo.
Passe bem Dona Rosalina!!
Manuel Penteado
Janeiro 2022
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