quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

ERNESTO

 


Faz hoje um ano, parece que foi ontem, o tempo passa tão depressa que quando tentamos recuperar os pensamentos já se perderam na memória do tempo.

Mas há coisas que ficam, não se perdem, são absorvidas de tal forma que passam a fazer parte do nosso quotidiano.

Como ia dizendo, faz hoje um ano, e recordo bem, era uma sexta-feira soalheira, um pouco quente e eu estava recostado no banco do jardim, um pouco contemplativo sobre as águas do tempo, que em leves ondulares se iam diluindo em espuma nas paredes do cais.

As gaivotas, um pouco atrevidas, descansavam nas amuradas, indiferentes às correrias da garotada.

Foi quase por acaso, mas, reparei nela, talvez pela forma, um pouco excêntrica, como estava vestida. Na cabeça um enorme chapéu, de palha, amarelo, contrastava com duas enormes flores vermelhas.

Vestia uma espécie de túnica, da cor das flores, e nos olhos uns enormes óculos escuros, com umas armações de florinhas douradas.

Era um pouco surreal, parecia uma personagem tirada da Alice no País das Maravilhas, mas fascinou-me a figura e, embora disfarçando, atraia-me o olhar. 

Tentei encobrir, mas ela reparou, e olhando com um sorriso aberto cumprimentou-me:

- Boa tarde cavalheiro! Já me conhece? Deve conhecer, pois, eu estou aqui todos os dias, só nos dias de chuva me recolho, ali, na paragem do autocarro, tem que ser.

Fiquei Intrigado, pois isto tem que encerrar, decerto, uma história que a minha curiosidade quer conhecer.

Retribui o sorriso e fiquei sem saber, bem, o que dizer, mas arrisquei:

- Não me recordo de já a ter visto, é raro vir para estes lados, pois se viesse, decerto, já tinha reparado numa senhora tão simpática!

- Oh que gentil! Venho sempre, faltei uns dias porque a saúde me deixou, mas estou de volta! Só espero que ele não tenha chegado nos dias em que faltei, mas tenho a certeza que não, ainda se deve recordar da morada.

Tirou os óculos por um momento, devia ter sido uma mulher muito interessante mas, agora, um emaranhado de rugas e vincos mostravam os estragos que os anos fizeram. 

Voltou a colocá-los e fitou o horizonte, na procura de algo que apenas ela sabia.

Mas, arrisquei:

- Quem espera tão devotadamente?

- Desculpe não lhe tinha dito, espero o meu Ernesto! É o meu marido, deve chegar um dia destes e eu tenho que estar aqui, para o levar para casa!

Desculpe a minha ignorância, repliquei:

- Mas, ele, quando vier deve avisar, não é?

- Tenho receio que não, ele saiu muito zangado, e com razão, eu era uma parva com os ciúmes, ele é muito bonito e as mulheres não o largavam. Nesse dia discutimos e ele saiu de casa, para embarcar, era comissário num barco, e nunca mais voltou.

Dias não sei, não os contei, mas fez 12 anos em Maio.

Fiquei um pouco perturbado. Doze anos? É estranho é muito tempo!

- Mas Dona, ia eu dizer Rosete, desculpe:

- Sim, eu sou Rosete, sabia o meu nome?

- Não não sabia! 

- Mas o que lhe disseram na companhia a quem pertencia o barco?

- Foram simpáticos, muito simpáticos, mas devem ter pensado que eu era maluquinha. 

Na marinha não tinham, nem nunca tiveram um comissário com o nome do meu marido.

- Eu sei que não quiseram dizer, deve ter ido nalguma missão secreta, uma espécie de espião, é o que é! 

- Oiça lá, perguntei, como era mesmo o nome do seu marido? Eu fui da marinha, estou reformado mas lembro nome de muitos colegas:

-Todos o conheciam, era o comissário Ernesto da Silva Pilrito.

Conheci um, mas não é e, acho que, nunca foi da marinha!

- Que pena, disse ela, quando o vi a si até pensei que poderia ser o meu Ernesto, os mesmos olhos, o queixo voluntarioso, o nariz aquilino, tantas semelhanças mas, já vi que não é, o Ernesto tem um cabelo preto, bem cheio e o seu é branco e já um pouco calvo.

Mas gostei de o conhecer é simpático como o meu Ernesto.

Pobre senhora, pensei, à espera do nada, tal como eu que voltei, da guerra, e não sei quem sou.

Se calhar até me chamo Ernesto.

Mas não!

Não me lembro da senhora! 

Fevereiro 2021

Manuel Penteado

 

Sem comentários: