quarta-feira, 16 de junho de 2021

RENASCER


 

Era um crepúsculo diferente, no colorido de um Sol que desaparecia, apenas a contraluz das gaivotas, davam um ar de vida.

Maria do Amparo, tirou os óculos escuros, o Sol há muito deixara de a encandear, e foi sentar-se na esplanada, o dia estava tão linda que ir para casa era o que menos lhe apetecia.

Ia ficar só mais um pouco, não podia atrasar-se muito, pois a mãe não estava tranquila quando demorava mais um bocado.

A velhota não era assim, mas desde que o pai morreu, tornou-se obsessiva, não lhe dava um momento de folga.

Controlava-lhe as horas de uma forma que a sufocava.

Hoje, para esta saltada à beira mar, teve que inventar uma urgência no escritório, mas mesmo assim, ainda, perguntou:

- Trabalho ao sábado, Maria do Amparo?

- Sim mãe, tenho que ir!
****
Andava cansada, no emprego eram simpáticos, mas havia alguma monotonia e, parecia-lhe que as colegas, não lhe perdoavam por ser nova e bonita, ela tinha esse sentimento, era perfeita.

Não era muito alta, mas Deus tinha distribuído tudo, nas doses certas e de forma segura.

Tinha uma beleza simpática, serena onde a doçura do sorriso ajudava a sua parte.

Hoje, sábado, apetecia-lhe passear. Gostava de percorrer, em passadas lentas, o caminho à beira mar e depois sentar-se na esplanada com um gelado, um imenso gelado, de chocolate e baunilha, com muito chantilly, mas mesmo muito!

Esperou o sorvete, enquanto os seu olhar percorria os restantes companheiros deste fim de sábado.

Na sua frente, um homem não desviava os olhos, Maria do Amparo fingia não reparar, mas na verdade até estava a apreciar esse interesse.

O tipo era, pensava ela, um pão, cabelo preto num estudado desalinho, olhos castanhos muito intenso e um sorriso cativante, debaixo de um fino bigode.

O doce ia desaparecendo, em colheradas lambidas, de forma um pouco libidinosa, pois a língua ia afagando de um modo sensual o colorido gelado, enquanto pelo canto do olho espreitava a forma, gulosa, como o homem a olhava.

Estava a gostar, há muito que andava esquecida dela própria, a mãe absorvia-lhe o tempo e cerceava-lhe, de certa forma, os sentimentos.

Se calhar o sujeito só estava curioso, ela sabia que despertava apetites mas, provavelmente, era apenas o gosto pelo olhar.

Terminou a guloseima, estava tão boa que se pudesse comia outra!

Começou a preparar-se para o regresso, quando o cavalheiro, se aproximou, sorriso rasgado e, quase, num lamento:

- Vai já embora, agora que arranjei coragem para me aproximar? Fique mais um pouco, ainda é cedo e a tarde está tão linda!- Bom, disse Maria do Amparo, tenho mesmo que ir! O homem não desarmou:-Tem carro, ou posso levá-la a algum lado?

Maria do Amparo sentiu um formigueiro a subir o corpo, um dilema tomou-lhe conta dos sentidos, por um lado agradava-lhe a ideia e a companhia, o comboio a essa hora não era muito agradável, mas o bom senso martelava-lhe a cabeça, não devia aceitar boleia de estranhos.

O homem estava na expectativa, mas parecia ter adivinhado os pensamentos.

- Sabe menina, não tenha receio, pode confiar, eu deixo-a onde quiser, mas primeiro deixe-me apresentar, sou Miguel Lopes, advogado e, sorriu, bom rapaz!Os dois diabinhos continuavam na sua cabeça, naquela luta do aceito, não aceito e, um tinha que vencer.Maria do Amparo aceitou o convite.
*****
Começou um romance, primeiro devagar, encontros fortuitos, passear de mãos dadas, jantar à luz de velas e uns beijos, fortuitos, que faziam corar de prazer Maria do Amparo.
Um dia, foi numa quinta-feira, Miguel naquela voz rouca que a entontecia, perguntou:

- Vamos fazer um fim-de-semana diferente?
Os meus pais têm uma casa de férias em Sesimbra, podíamos aproveitar para ficarmos juntos. Que dizes?

- Mas, perguntou Maria do Amparo, vou conhecer os teus pais?

O homem pareceu mostrar algum incómodo, cofiou com o dedo o fino bigode. Limpou, com um leve pigarro, a garganta antes de responder:

- Amor, os meus pais estão em Évora, eu vivo com a minha irmã, mas um dia vou juntar toda a família para te apresentar. Quero que eles fiquem a conhecer a minha linda namorada, a mulher da minha vida!

- Bom! Suspirou ela, eu acho que, ainda, é muito cedo! Mas, tá bem, vamos!
*****

O tempo foi passando, cada dia se sentia mais apaixonada.

Bendita a hora em que aceitou aquela boleia, estava feliz e hoje mais radiosa, tinha um cheiro a pêssegos frescos. Pegou com mais força, do que o habitual, na mão do namorado. 

Havia felicidade no seu olhar, mas notava-se algum receio na voz.

- Sabes amor que vamos ser pais!

- Que estas a dizer mulher? Gritou Miguel. Perdestes a cabeça? Queres dar cabo da minha vida? Eu não vou ser nada disso e tu, se quiseres, podes ser mas não contas comigo!

Voltou a costas e desapareceu.
Maria do Amparo quis chorar mas nem uma única lágrima chegou aos seus olhos. Mordeu, de desespero, os lábios. 

******

Miguel, apareceu no dia seguinte mas, pelo semblante carregado, ela percebeu que algo estava mal. Não tinha aquele sorriso que a cativava, o fino bigode parecia, apenas, um traço inexpressivo naquele rosto, hoje, tão diferente do habitual.
Nem sequer lhe deu um beijo, limitou-se a dizer:
- Os meus sentimentos são verdadeiros, o resto é uma mentira pegada. Não sou Miguel Lopes, não sou advogado, não sou livre, tenho mulher!

Se quiseres vais tirar essa criança, que não tem culpa, continuas a ser a minha namorada, até que eu um dia eu seja livre, depois pensamos na nossa vida.

Teve sorte, ela tinha apenas uma revista na mão, mas mesmo assim sentiu a força a golpear-lhe a cara, sentiu nos olhos a saliva, quando ela lhe cuspiu no rosto e ouviu o martelar, nos tímpanos, da raiva das palavras:

- Desaparece canalha! Desaparece! Desaparece, antes que te arranque os olhos, com as minhas próprias mãos!
*****

Maria do Amparo nunca mais quis saber, desse homem que era falso, em tudo, até no nome.

Ia viver a vida, a vida como sempre vivera, mas agora tinha uma missão muito delicada e muito difícil.

Tinha que esconder uma gravidez, sabia quão difícil ia ser, o corpo ia perder as formas, muitas transformações que precisava disfarçar, com roupas mais largas e apropriadas.

Queria passar a gravidez sem ninguém saber. Em casa ia ser mais difícil, mas tinha que conseguir!

O pior período seria no Inverno e, nessa estação, era mais fácil disfarçar o corpo, trajes mais grossos iam ajudar.
Pelas contas, dela, devia acontecer no princípio de Dezembro, tinha que preparar tudo, ia marcar férias, ninguém podia desconfiar, a criança nunca ia aparecer, sem parto não havia bebé, sem bebé não tinha havido parto.
Tinha que ser inteligente, calculista e não se deixar levar por sentimentos, tinha que esquecer essa coisa do instinto maternal.

Era só um momento, depois acabava, um recém-nascido não chega a sentir a vida. 

Tinha que ir preparando, dentro da cabeça, todos os detalhes, tinha que inventar a coragem que lhe faltava, carregar e disfarçar uma gravidez, ter um parto sem ajuda e longe de tudo e todos e, por fim, fazer desaparecer uma criança que, para o mundo, nunca nasceu.

Só esperava que Deus compreendesse, o suficiente, para a perdoar.
A mãe não suspeitava da verdade, mas estava preocupada com a filha.

Estranhava porque andava sempre agoniada, de manhã era um castigo para se levantar, não deixava ninguém entrar no quarto e, até no corpo, sempre tão jeitoso, se notava um grande descuido.

Agora a mania de férias em Dezembro. Sim no Inverno, com tanto frio queria ir para a aldeia, para uma casa que era dos avós!
E foram, mesmo, para a aldeia.
A casa era enorme, estava fria e algumas teias de aranhas enfeitavam os cantos.

Uma vassoura, dois troncos e um molho de chamiços fizeram a transformação.
Agora já havia conforto.
Maria do Amparo tinha tudo preparado, havia uma cabana ao fundo do quintal, que em tempos foi usada, pelo avô, para recolher a mula. Estava limpa e com as paredes caiadas.

Num dos lados, improvisou uma espécie de tarimba, com umas velhas passadeiras.

Foi lá, também, que ao canto cavou uma cova, guardou a terra numa caixa, depois ia precisar.

Juntou, num saco, o que julgou precisar sem esquecer um pano branco, que iria servir de mortalha, pensou num saco mas, o plástico, levava muitos anos a ser corrompido.

Agora era aguardar, não faltava muito tempo, já ia sentindo os sinais da aproximação, pelo menos era o que tinha lido, a barriga descaída, necessidade constante de urinar, o feto não mexia tanto e algum corrimento. Tinha que estar preparada.
Dia 8 de Dezembro, seis horas da manhã, umas grandes contrações avisaram da hora, enrolou-se num cobertor e sem fazer barulho, raspou-se a caminho da cabana.

Deitou-se no canto que tinha reservado, as dores eram mais constantes e rebentaram as águas.

Muitas dores, força que não queria perder. Soprava como se tivesse uma vela para apagar e, de repente, o filho foi mostrando a cabeça, depois os ombros e por fim estava todo cá fora.
Estava exausta, pegou na criança, ia acabar o que começou.
Ganhou coragem e limpou-o com o pano que ia servir de sudário.

Depois, olhou-o nos olhos e perdeu a coragem.

Embrulhou-o no cobertor, encostou-o contra o peito. Não ia fazer mais nada, o seu menino era tão bonito!
Levantou-se a custo, sempre com a criança junto ao coração, entrou no quarto da mãe e gritou:

- Mãe, preciso que me ajudes a criar o teu neto! Ajudas mãe?

É tão lindo o nosso menino! 

Olha para ele! 

Olha!

Junho 2021

Manuel Penteado


 

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