Tinha acabado de fazer 23 anos e parecia já ter vivido uma eternidade. Não tinha rugas no rosto mas tinha, dentro do corpo, as marcas de uma existência difícil.
Ficara órfão, de mãe, aos 7 anos e o pai, homem simples, perdeu todo o interesse pela vida e procurou, no álcool, o refúgio para a perda da mulher que, sempre, tinha sido a verdadeira razão da sua existência.
Perdeu a mulher, o
emprego, a dignidade e estava próximo de perder o amor do filho.
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O dia estava lindo e o ribeiro corria em turbilhões, pois a chuva dos últimos dias tinha aumentado consideravelmente o caudal.
Gustavo ia atirando pedras, que em saltos iam deslizando sobre as águas. Havia três dias que não ia à escola, não se sentia bem junto dos outros rapazes, com os calções tão delidos que a cada momento tinha receio de ficar com o rabo à mostra e ser o motivo da chacota dos colegas. O Fernando era o único, verdadeiramente, seu amigo e que com ele, muitas vezes, dividia o lanche. Outras vezes era a dona Alzira que o chamava e, lhe aconchegava o estômago, com uma tigela de sopa e uma bela fatia de pão untada com manteiga.
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Quando tentava olhar para o passado, apenas via um rapazinho que lutava contra a adversidade, que se alimentava da generosidade das vizinhas, com um pai de grande coração que vivia anestesiado, nos copos de vinho, que os amigos lhe iam pagando nas tascas da aldeia.
Quando fez 14 anos o senhor Arlindo deu-lhe um lugar na mercearia, a troco de umas poucas moedas e por lhe encher o estômago em duas refeições diárias.
Aos 18 anos arranjou emprego, na vila, na cooperativa.
Era difícil, ao fim de um dia de trabalho a pisar uvas, a girar o engenho para esmagar as azeitonas ou a carregar as sacas dos cereais, voltar a uma casa vazia, onde apenas o "mandrião", velho rafeiro amarelo, escanzelado e brincalhão o vinha receber com grandes festejos, num alegre abanar de cauda.
Por toda a casa as recordações andavam de mãos dadas, com as saudades de uma mãe de quem já, quase, esquecera o rosto e a imagem de um pai, arrastando um desgosto afogado no álcool.
Era difícil olhar as paredes tão vazias e, ao mesmo tempo, tão cheias de lembranças.
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Neste domingo soalheiro, como habitualmente, procurou as margens do ribeiro onde, as suas pedras, faziam as melhores e mais longas derrapagens, deixando círculos que suavemente iam morrendo nas margens. As libélulas, quais maquinas aladas, pousavam suavemente nos caules que emergiam das águas. As aves, em voos rasantes, deixavam um risco de asa antes de mergulharem na superfície ondulada na procura de alimento. Em lado nenhum se sentia tão calmo, parecia que o murmúrio da aragem lhe sussurrava os conselhos, com que a mãe o acompanhava. Por vezes, era tão nítida que parecia que a voz não era trazida pelo vento, mas que a mãe estava tão presente que até doía.
Ao princípio tinha medo mas agora até ficava mais tranquilo. Fechava os olhos e imaginava-se aconchegado, nos braços macios, e banhado no perfume que nunca esqueceu e que entrava no seu corpo, tomava conta dos seus nervos, embebia os seus músculos, entrava no seu sangue e percorria-o todo numa doce sensação de paz e de tranquilidade.
Chegou a adormecer embebido nessa doce sensação de tranquilidade e, quando acordava, sentia, mas sentia mesmo, no ar aquele aroma que o corpo da mãe exalava e que lhe dava aquela paz que o tornava, por momentos, o mais feliz menino de mundo.
Ainda hoje, e já vão decorridos tantos anos, quando pousa a cabeça na sua almofada, sente a mão da mãe aconchegando a dobra do lençol.
Fecha os olhos e tenta imaginar aquele rosto, mas a imagem esta um pouco difusa, não consegue descodificar os pontos, que na sua mente, tenta compor o todo que aos poucos se tem desvanecido. Quando contempla a amarelecida foto que, religiosamente, guarda entra as páginas da Bíblia parece que o sorriso se abre mais, mas está cada vez mais esbatida. A mãe está sempre com ele, o seu cheiro, toda a sua essência mas o rosto estava a fugir, cada vez mais desbotado, como se quisesse envelhecer e não ficar na idade do filho que ia crescendo.
Naquela manhã a ribeira corria tranquila, no ar sentia o cheiro das flores de loendro que florescem nas margens.
Gustavo estendeu-se
numa pedra e ficou a contemplar o horizonte e, a imaginar o que seria a vida
para além daqueles montes, que ao longe, pareciam encostar ao céu e fazerem a
fronteiro entre a sua existência e o outro mundo que um dia ia descobrir.
Sempre desejou fazer a trouxa e apanhar a carreira que o levasse para esse desconhecido da cidade, mas não podia deixar o pai.
Se ele partisse quem o iria recolher, ao fim do dia, à tasca do Onofre?
Voltou quando a fome o começou a apertar mais e as amoras não eram, já, suficientes para a enganar.
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Não demorou muito que
uma cirrose levasse o pai, que até à hora da morte continuou sempre a reclamar
pela sua Lena, que tão cedo tinha partido.
Gustavo, ficou sozinho neste mundo onde o colocaram, sem lhe pedir opinião, e com poucas condições para poder lutar pela sobrevivência.
Agora não tinha mais ninguém a não ser aquela, desconhecida e longínqua, tia que diziam ter na cidade.
A casa podia ficar fechada e de certo que a vizinha não se importaria de ficar com o velho rafeiro, que desde a morte do pai deixara de abanar a cauda e ia definhando lentamente, deitado na soleira da porte.
Era uma decisão difícil, tinha medo do mundo que desconhecia, receava toda a confusão que via quando espreitava as notícias, da televisão, na taberna.
Agora já nada havia a fazer, já dissera ao seu chefe, senhor Pica, que deixaria de trabalhar na cooperativa e que ia abalar para a cidade.
A cabeça andava num turbilhão, as ideias estavam baralhadas, o medo tinha-se apoderado de todos os seus sentidos. Como ia enfrentar o desconhecido, como se iria orientar na cidade grande? O bulício, o frenesim, o trânsito louco e toda a voracidade, que o iriam tragar numa loucura a que tinha que se habituar.
Tinha tudo programado, amanhã cedo apanhava a carreira que o levaria ao comboio, depois seria a grande aventura.
Foi uma noite de insónias, em todo o sonho via homens, sem rosto, que o perseguiam e quanto mais fugia mais se aproximavam, queriam à força que ele entrasse num comboio sem janelas, pintado de negro e donde saiam sons e gemidos que o arrepiavam. Acordou encharcado, corpo dorido. Teve medo, há muito que o não sentia.
Voltou a adormecer e viu a mãe que, tal como os homens, tinha o rosto coberto por uma névoa, mas o perfume era o mesmo, doce, suave e reconfortante. Ficou inebriado e tranquilamente dormiu em paz o resto da noite.
*********
A cidade era enorme e a confusão ultrapassava tudo o que tinha imaginado, pessoas para a direita e para a esquerda num atropelo sem respeitarem nada nem ninguém.
Gustavo estava deslumbrado e confuso.
Quando agarrado à mala, enfrentou a rua ficou perdido sem saber o que fazer. Estava inquieto, baralhado e o seu olhar andava perdido ao tentar abarcar tudo o que o que o rodeava, aqueles prédios altos, os carros que se cruzavam e que só por milagre passavam sem nunca se baterem.
As moças de pernas altas e descobertas, que se equilibravam em saltos, tão altos, que pareciam, mesmo, as andas que um dia o senhor Zé Adelino lhe tinha feito.
Uma, por sinal bem jeitosa, até lhe disse:
- Então filho hoje não queres nada?
Ficou ruborizado, tinha ouvido falar delas, mas sempre pensou que eram fanfarronices de quem vinha à cidade, afinal era mesmo verdade.
Teve vontade de falar com a menina, mas não sabia, mesmo, o que lhe dizer.
Arranjou um quarto numa pensão barata, num terceiro andar, com uma escada íngreme e malcheirosa. A cama era pior da que deixara na aldeia, lençóis manchados e com cheiro a azedo de gordura e sexo. As paredes do quarto tinham manchas, de humidade, que aos seus olhos se tornavam em fantasmas, que o iriam prosseguir ao longo da noite e logo aqui, tão longe, na cidade grande onde a mãe não o podia ajudar.
Precisava descansar, amanhã fazia 25 anos e tinha reservado, como presente, um dia de descanso para uma visita à cidade.
O cansaço foi seu
aliado e a noite foi rápida. Quando acordou pensou que tinha que aproveitar o
dia, e depois tinha que procurar uma ocupação pois o dinheiro que tinha
depressa ia acabar. O quarto imundo era caro, o preço de uma refeição estava
acima das suas possibilidades.
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Vagueou pelas ruas cheias, encheu os olhos de coisas que sabiam que existiam, mas que ele nunca vira. Passeou por avenidas que pareciam não ter fim, andou ao acaso e, de repente, tinha a impressão de estar de volta a sítios por onde já tinha passado.
Encontrou o rio, que tal como a cidade, era enorme, sujo, com barcos que deitavam fumo das chaminés. Teve saudades da sua ribeira de águas limpas, que corriam ligeiras, saltando de fraga em fraga, com as margens enfeitadas de juncos.
Este rio era triste, as águas espraiavam-se contra as margens onde os barcos baloiçavam acompanhando a cadência dessa ondulação.
Esteve horas olhando ao longe e a imaginar para onde iriam todos os barcos que o sulcavam.
Estava a entardecer e a fome obrigou-o a entrar numa tasca, onde se ofereceu uma refeição acompanhada de uma cerveja, afinal era o seu aniversário.
Começou a pensar no regresso e nas voltas que teria que dar até encontrar a rua da sua pensão, tinha escrito num papel os nomes, embora tivesse a certeza do a encontrar.
Seguindo o seu sentido, atravessou o largo e seguiu a avenida, tinha a certeza, donde viera.
Ao fim teria que voltar à esquerda e seguir até encontrar, aquela praça, com a estátua de um cavaleiro.
Já a estava a ver ao longe e sorriu satisfeito.
Levava a cabeça cheia de sonhos e projetos, arranjar um emprego, alugar um quarto com uma cozinha para poder preparar as suas refeições, ter uma vida diferente.
Embrenhado nos seus pensamentos saiu do passeio.
Ouviu um guinchar de travões, sentiu uma pancada bruta, viu-se a voar passou por cima carro e ficou estatelado na calçada. Sentiu uma dor aguda, que parecia subir pelo seu corpo, mil estrelas brilhavam no seu cérebro, um liquido viscoso corria da sua cabeça, um doce torpor ia tomando conta do seu corpo. Tinha muito sono e não queria ouvir o que diziam, as pessoas, que o rodeavam, só lhe apetecia dormir.
Junto a ele a mãe sorria, desta vez o seu rosto era tão nítido, estava rodeada de uma luz tão brilhante e a musica era tão suave.
A aldeia estava linda com os campos cobertos de flores, o ribeiro corria manso, a sua casa estava rodeada de açucenas, o " mandrião" abanava a cauda de alegria.
A mãe, delicadamente, segurou as suas mãos.
Pela última vez sorriu.
Manuel Penteado
Dezembro 2021
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