Virou-se para o Sol, cerrou os olhos, e
deixou-se embebedar nos raios que, teimosamente, lhe aqueciam a retina.
Não sabia descrever a sensação, era algo
que o inebriava, aquela intensidade de luz, que adivinhava, apenas adivinhava,
pelo calor que o aquecia e pelos flashes de luz que o cérebro recordava.
Deixava o pensamento voar por um mar de recordações, os olhos verdes da
Cláudia, o sorriso doce da mãe, a trança enrolada, no alto da cabeça, da avó
Carolina, o rosto pardo do pai consumido pela doença que o minava.
Tudo isso ficava visível naquele pedaço, do cérebro, onde guardava as
lembranças.
Mas hoje era diferente, ou talvez não, apenas a sensibilidade, dos raios de
Sol, lhe tinham avivado, um pouco mais, todo o emaranhado de recordações que
bailavam no álbum da vida que já viveu.
O pai abalou, numa tarde fria de inverno, sem um ai, sem um lamento. Fechou os
olhos e devolveu a alma ao criador.
A mãe, depois do pai partir, entrou numa depressão que a foi consumindo até que
um dia a encontraram, no alpendre, sentada no cadeirão de buinho, ainda a
levaram para o hospital, mas era tarde, tinha ido fazer companhia a quem a
havia acompanhado ao longo de 40 anos.
A avó Carolina, estava tão velha, que precisou de recolher a um lar. Não
aceitou muito bem, ninguém aceita, um lar não é, propriamente, a nossa casa.
Com o tempo foi aceitando, a lucidez é boa mas a memória, tantas vezes,
atraiçoa o pensamento.
Todas as semanas a vai visitar, segura-lhe as mãos e sente a frágil seda que
cobre um rendilhado de veias.
Ouve as lamúrias, mente, tem que mentir, não lhe pode contar que a filha partiu
para um lugar donde não se volta.
Mas a avó Carolina, custa dizer,
felizmente baralha um pouco, os momentos, e lamenta:
- Sabes Sérgio que a tua mãe já se esqueceu de mim? Nunca me vem visitar!
- Avó não diga isso! A mãe vem sempre não se lembra? Nem sempre pode, a saúde
não deixa, por isso eu venho mais vezes.
A velhota deu uma pequena gargalhada.
Ele ouviu:
- A tua avó é mesmo uma tonta! Esqueço
muitas coisas, tens razão, ela vem mas não me lembro!
Passou cuidadosamente, as mãos, na
cabeça da avó, e sentiu a trança, estava sedosa e bem enrolada, como ela
gostava.
Deu um beijo de despedida, afagou-lhe o
rosto e sentiu que algumas lágrimas escorriam nas rugas do rosto, Não devia mas
perguntou:
- Porquê avó, porquê essas lágrimas?
Sentiu que ela limpou o rosto para
responder:
- A tua avó está uma tonta, são lagrimas de alegria por te ter aqui!
*****
Os pensamentos, faziam um emaranhado, que o levavam a recordações que queria
esquecer, mas era difícil porque os olhos verdes, da Cláudia, ainda tingem o
pensamento, do Sérgio, e as ultimas palavras, quando se despediu, continuam a
ecoar num espiral de sons, que começam fortes e se vão diluindo, como um eco,
que se perde mas fica dentro de nós.
***********
Foi há dois anos que tudo começou,
notava que os olhos não tinham a mesma acuidade, na leitura as letras apareciam
em reflexos como se estivessem sobrepostas, havia uma distorção, das imagens,
que não era habitual.
Não havia duvidas, os olhos estavam
doentes, tinha que consultar o oftalmologista.
- Astigmatismo, disse o médico, precisa
usar óculos!
Mas não, de repente, deixou de ver.
Apenas pequenos raios de luz, sombras e, a espaços, alguns contornos
indefinidos.
Não tardou e, estava cego, ficou no
escuro. As cores, essas, só na sua imaginação.
Cláudia, que a princípio o acompanhou,
um dia pediu desculpa:
- Perdoa, Sérgio, mas não pudemos
continuar! Se nem me podes ver como me posso pôr bonita para ti? Tenho pena mas
não dá!
Partiu e nem, sequer, um beijo de
despedida.
*****
Foi uma longa luta, até que um
especialista, depois de um exame biomicroscópico, fez o diagnóstico:
- O Sérgio tem uma doença, até certo
ponto rara, e que muitos colegas confundem com astigmatismo ou miopia, mas não,
sofre mesmo de Ceratocone, houve uma grande distorção, degeneração da córnea, e
a doença está muito avançada.
Vamos fazer o tratamento mais adequado,
inscreve-lo na lista de espera, pois só um transplante da córnea, pode resolver
o problema.
Mas é novo e tudo se vai resolver, não vamos perder a esperança!
****
Sérgio foi visitar a avó, faz hoje 96 anos.
Sentiu, nos seus dedos, o rosto magro e rendilhado e, no alto da cabeça a
trança, mais fraca, o cabelo já não era o mesmo.
A avó estranhou, a forma, como ele a tateava e perguntou:
- Estavas com saudades da avó Carolina?
Apenas respondeu:
- Também avó, mas estava a despedir-me
desta sensação. Sabes avó, quando voltar já te vou poder ver, os dedos vão
deixar de ser os meus olhos!
- Mas o que aconteceu? Perguntou a avó,
um pouco assustada.
- Fui chamado, para um transplante,
quando regressar já te posso ver, com os meus olhos.
Com a ajuda de alguém, que foi, mas
deixou a luz para eu continuar a ver.
Maio 2021
Manuel
Penteado