Tinha acabado de
fazer 23 anos e parecia já ter vivido uma eternidade. Não tinha rugas no rosto
mas tinha, dentro do corpo, as marcas de uma existência difícil.
Ficara órfão, de mãe,
aos 7 anos e o pai, homem simples, perdeu todo o interesse pela vida e procurou,
no álcool, o refúgio para a perda da mulher que, sempre, tinha sido a
verdadeira razão da sua existência.
Perdeu a mulher, o
emprego, a dignidade e estava próximo de perder o amor do filho.
******
O dia estava lindo e
o ribeiro corria em turbilhões, pois a chuva dos últimos dias tinha aumentado
consideravelmente o caudal.
Gustavo ia atirando
pedras, que em saltos iam deslizando sobre as águas. Havia três dias que não ia
à escola, não se sentia bem junto dos outros rapazes, com os calções tão
delidos que a cada momento tinha receio de ficar com o rabo à mostra e ser o
motivo da chacota dos colegas. O Fernando era o único, verdadeiramente, seu
amigo e que com ele, muitas vezes, dividia o lanche. Outras vezes era a dona
Alzira que o chamava e, lhe aconchegava o estômago, com uma tigela de sopa e
uma bela fatia de pão untada com manteiga.
*****
Quando tentava olhar
para o passado, apenas via um rapazinho que lutava contra a adversidade, que se
alimentava da generosidade das vizinhas, com um pai de grande coração que vivia
anestesiado, nos copos de vinho, que os amigos lhe iam pagando nas tascas da
aldeia.
Quando fez 14 anos o
senhor Arlindo deu-lhe um lugar na mercearia, a troco de umas poucas moedas e
por lhe encher o estômago em duas refeições diárias.
Aos 18 anos arranjou
emprego, na vila, na cooperativa.
Era difícil, ao fim
de um dia de trabalho a pisar uvas, a girar o engenho para esmagar as azeitonas
ou a carregar as sacas dos cereais, voltar a uma casa vazia, onde apenas o
"mandrião", velho rafeiro amarelo, escanzelado e brincalhão o vinha receber
com grandes festejos, num alegre abanar de cauda.
Por toda a casa as
recordações andavam de mãos dadas, com as saudades de uma mãe de quem já,
quase, esquecera o rosto e a imagem de um pai, arrastando um desgosto afogado
no álcool.
Era difícil olhar as paredes
tão vazias e, ao mesmo tempo, tão cheias de lembranças.
*******
Neste domingo
soalheiro, como habitualmente, procurou as margens do ribeiro onde, as suas
pedras, faziam as melhores e mais longas derrapagens, deixando círculos que
suavemente iam morrendo nas margens. As libélulas, quais maquinas aladas,
pousavam suavemente nos caules que emergiam das águas. As aves, em voos
rasantes, deixavam um risco de asa antes de mergulharem na superfície ondulada
na procura de alimento. Em lado nenhum se sentia tão calmo, parecia que o
murmúrio da aragem lhe sussurrava os conselhos, com que a mãe o acompanhava.
Por vezes, era tão nítida que parecia que a voz não era trazida pelo vento, mas
que a mãe estava tão presente que até doía.
Ao princípio tinha
medo mas agora até ficava mais tranquilo. Fechava os olhos e imaginava-se
aconchegado, nos braços macios, e banhado no perfume que nunca esqueceu e que
entrava no seu corpo, tomava conta dos seus nervos, embebia os seus músculos,
entrava no seu sangue e percorria-o todo numa doce sensação de paz e de
tranquilidade.
Chegou a adormecer
embebido nessa doce sensação de tranquilidade e, quando acordava, sentia, mas
sentia mesmo, no ar aquele aroma que o corpo da mãe exalava e que lhe dava
aquela paz que o tornava, por momentos, o mais feliz menino de mundo.
Ainda hoje, e já vão
decorridos tantos anos, quando pousa a cabeça na sua almofada, sente a mão da
mãe aconchegando a dobra do lençol.
Fecha os olhos e
tenta imaginar aquele rosto, mas a imagem esta um pouco difusa, não consegue
descodificar os pontos, que na sua mente, tenta compor o todo que aos poucos se
tem desvanecido. Quando contempla a amarelecida foto que, religiosamente,
guarda entra as páginas da Bíblia parece que o sorriso se abre mais, mas está
cada vez mais esbatida. A mãe está sempre com ele, o seu cheiro, toda a sua
essência mas o rosto estava a fugir, cada vez mais desbotado, como se quisesse
envelhecer e não ficar na idade do filho que ia crescendo.
Naquela manhã a
ribeira corria tranquila, no ar sentia o cheiro das flores de loendro que
florescem nas margens.
Gustavo estendeu-se
numa pedra e ficou a contemplar o horizonte e, a imaginar o que seria a vida
para além daqueles montes, que ao longe, pareciam encostar ao céu e fazerem a
fronteiro entre a sua existência e o outro mundo que um dia ia descobrir.
Sempre desejou fazer
a trouxa e apanhar a carreira que o levasse para esse desconhecido da cidade,
mas não podia deixar o pai.
Se ele partisse
quem o iria recolher, ao fim do dia, à tasca do Onofre?
Voltou quando a fome
o começou a apertar mais e as amoras não eram, já, suficientes para a enganar.
*********
Não demorou muito que
uma cirrose levasse o pai, que até à hora da morte continuou sempre a reclamar
pela sua Lena, que tão cedo tinha partido.
Gustavo, ficou
sozinho neste mundo onde o colocaram, sem lhe pedir opinião, e com poucas
condições para poder lutar pela sobrevivência.
Agora não tinha mais
ninguém a não ser aquela, desconhecida e longínqua, tia que diziam ter na
cidade.
A casa podia ficar
fechada e de certo que a vizinha não se importaria de ficar com o velho
rafeiro, que desde a morte do pai deixara de abanar a cauda e ia definhando
lentamente, deitado na soleira da porte.
Era uma decisão
difícil, tinha medo do mundo que desconhecia, receava toda a confusão que via
quando espreitava as notícias, da televisão, na taberna.
Agora já nada havia a
fazer, já dissera ao seu chefe, senhor Pica, que deixaria de trabalhar na
cooperativa e que ia abalar para a cidade.
A cabeça andava num
turbilhão, as ideias estavam baralhadas, o medo tinha-se apoderado de todos os
seus sentidos. Como ia enfrentar o desconhecido, como se iria orientar na
cidade grande? O bulício, o frenesim, o trânsito louco e toda a voracidade, que
o iriam tragar numa loucura a que tinha que se habituar.
Tinha tudo
programado, amanhã cedo apanhava a carreira que o levaria ao comboio, depois
seria a grande aventura.
Foi uma noite de
insónias, em todo o sonho via homens, sem rosto, que o perseguiam e quanto mais
fugia mais se aproximavam, queriam à força que ele entrasse num comboio sem
janelas, pintado de negro e donde saiam sons e gemidos que o arrepiavam.
Acordou encharcado, corpo dorido. Teve medo, há muito que o não sentia.
Voltou a adormecer e
viu a mãe que, tal como os homens, tinha o rosto coberto por uma névoa, mas o
perfume era o mesmo, doce, suave e reconfortante. Ficou inebriado e
tranquilamente dormiu em paz o resto da noite.
*********
A cidade era enorme e
a confusão ultrapassava tudo o que tinha imaginado, pessoas para a direita e
para a esquerda num atropelo sem respeitarem nada nem ninguém.
Gustavo estava
deslumbrado e confuso.
Quando agarrado à
mala, enfrentou a rua ficou perdido sem saber o que fazer. Estava inquieto,
baralhado e o seu olhar andava perdido ao tentar abarcar tudo o que o que o
rodeava, aqueles prédios altos, os carros que se cruzavam e que só por milagre
passavam sem nunca se baterem.
As moças de pernas
altas e descobertas, que se equilibravam em saltos, tão altos, que pareciam,
mesmo, as andas que um dia o senhor Zé Adelino lhe tinha feito.
Uma, por sinal bem
jeitosa, até lhe disse:
- Então filho hoje
não queres nada?
Ficou ruborizado,
tinha ouvido falar delas, mas sempre pensou que eram fanfarronices de quem
vinha à cidade, afinal era mesmo verdade.
Teve vontade de falar
com a menina, mas não sabia, mesmo, o que lhe dizer.
Arranjou um quarto
numa pensão barata, num terceiro andar, com uma escada íngreme e malcheirosa. A
cama era pior da que deixara na aldeia, lençóis manchados e com cheiro a azedo
de gordura e sexo. As paredes do quarto tinham manchas, de humidade, que aos seus
olhos se tornavam em fantasmas, que o iriam prosseguir ao longo da noite e logo
aqui, tão longe, na cidade grande onde a mãe não o podia ajudar.
Precisava descansar,
amanhã fazia 25 anos e tinha reservado, como presente, um dia de descanso para
uma visita à cidade.
O cansaço foi seu
aliado e a noite foi rápida. Quando acordou pensou que tinha que aproveitar o
dia, e depois tinha que procurar uma ocupação pois o dinheiro que tinha
depressa ia acabar. O quarto imundo era caro, o preço de uma refeição estava
acima das suas possibilidades.
*******
Vagueou pelas ruas
cheias, encheu os olhos de coisas que sabiam que existiam, mas que ele nunca
vira. Passeou por avenidas que pareciam não ter fim, andou ao acaso e, de
repente, tinha a impressão de estar de volta a sítios por onde já tinha
passado.
Encontrou o rio, que
tal como a cidade, era enorme, sujo, com barcos que deitavam fumo das chaminés.
Teve saudades da sua ribeira de águas limpas, que corriam ligeiras, saltando de
fraga em fraga, com as margens enfeitadas de juncos.
Este rio era triste,
as águas espraiavam-se contra as margens onde os barcos baloiçavam acompanhando
a cadência dessa ondulação.
Esteve horas olhando
ao longe e a imaginar para onde iriam todos os barcos que o sulcavam.
Estava a entardecer e
a fome obrigou-o a entrar numa tasca, onde se ofereceu uma refeição acompanhada
de uma cerveja, afinal era o seu aniversário.
Começou a pensar no
regresso e nas voltas que teria que dar até encontrar a rua da sua pensão,
tinha escrito num papel os nomes, embora tivesse a certeza do a encontrar.
Seguindo o seu
sentido, atravessou o largo e seguiu a avenida, tinha a certeza, donde viera.
Ao fim teria que
voltar à esquerda e seguir até encontrar, aquela praça, com a estátua de um
cavaleiro.
Já a estava a ver ao
longe e sorriu satisfeito.
Levava a cabeça cheia
de sonhos e projetos, arranjar um emprego, alugar um quarto com uma cozinha
para poder preparar as suas refeições, ter uma vida diferente.
Embrenhado nos seus
pensamentos saiu do passeio.
Ouviu um guinchar de
travões, sentiu uma pancada bruta, viu-se a voar passou por cima carro e ficou
estatelado na calçada. Sentiu uma dor aguda, que parecia subir pelo seu corpo,
mil estrelas brilhavam no seu cérebro, um liquido viscoso corria da sua cabeça,
um doce torpor ia tomando conta do seu corpo. Tinha muito sono e não queria
ouvir o que diziam, as pessoas, que o rodeavam, só lhe apetecia dormir.
Junto a ele a mãe
sorria, desta vez o seu rosto era tão nítido, estava rodeada de uma luz tão
brilhante e a musica era tão suave.
A aldeia estava linda
com os campos cobertos de flores, o ribeiro corria manso, a sua casa estava
rodeada de açucenas, o " mandrião" abanava a cauda de alegria.
A mãe, delicadamente,
segurou as suas mãos.
Pela última vez sorriu.
Manuel Penteado
Dezembro 2021